Crônica

Em Meio a uma Tarde muito Quente

Uma crônica sobre calor

pedro a duArte
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5 min readSep 24, 2021

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Assim que chegou em seu apartamento, tirou a camiseta e a jogou no sofá. Colocou uma peça do jogo americano no balcão da cozinha, um prato, um copo, talheres. A caminhada de volta da faculdade, além de cansativa, o deixou com fome. Rapidamente abriu a geladeira, pegou a alface. Temperou a salada e comeu. Depois pegou salpicão e batata palha, esse foi seu almoço — quando se mora sozinho, se improvisa com as refeições. A bebida não poderia ser outra que não uma Coca-Cola, comprada na padaria da esquina. A cada gole, sentia a temperatura de seu corpo atingir o equilíbrio. Tão bom comer coisa geladinha nesse tempo! O calor, por agora, parecia irrelevante.

Fez um esforço para lavar a (pouca) louça após a refeição ao invés de procrastinar a tarefa — até a água da pia estava saindo quente! Mas, ao terminar, se jogou no sofá e lá ficou indo do Instagram pro Twitter pro Facebook, do Instagram pro Twitter pro Facebook, Instagram, Twitter, Facebook. Era em dias abafados como esse que entendia o que Macunaíma queria dizer com “Ai, que preguiça…!” Muito quente pra fazer qualquer obrigação, seu Eu do Futuro que se virasse!

Tão entediante esse ciclo de redes sociais. Tão entediante essa tarde aborrecida. Nada acontece. Pelo menos uma chuva podia acontecer — ele gostava de assistir a tempestade de verão chegando e, meia hora depois, indo embora. Esperar pela chuva não era o suficiente, já que estava procrastinando poderia ler um livro.

No caminho da sala para o quarto tirou seus shorts. O bom de morar sozinho é que você pode andar por aí seminu, sem pudor. Jogou-se na cama e sentiu-se como um daqueles adolescentes angustiados do período romântico — cuja angústia talvez viesse de ter absolutamente nada melhor pra fazer. Num calorão desses dá pra ser melancólico? Como é que alguém decide ser gótico, adotar esse estilo de vida? Não faz sentido ser emo no Brasil, é impossível vestir um look 100% preto nesse clima. Para ele, isso era coisa de gente colonizada culturalmente — não importa que você seja um viado brilhante, Álvares de Azevedo, Noites na Taverna não faz sentido no Brasil!

Pegou o livro. Contava a história de um menino italiano de 17 anos que em todas as férias ia para a villa de seus pais passar o verão — a cada ano o pai (que era professor de uma universidade), convidava um rapaz para trabalhar como seu assistente em troca de ajuda-lo com sua dissertação. Este menino se apaixona pelo rapaz da vez: um estadunidense de 24 anos. Narrado em primeira pessoa, o livro explora a descoberta da sexualidade daquele menino. Enquanto lia, ficou sonhando em passar um verão em uma villa na Itália, comendo burrata com manjericão e bebendo limonada.

“Ilha florida no Sena perto de Vetheuil”, de Claude Monet (1880); 66x81cm, Óleo sobre tela. Acervo do Metropolitan Museum of Art (Cidade de Nova York).

Ele tinha parado a leitura no momento em que o menino e o rapaz estavam sozinhos em um córrego — espaço onde, supostamente, Monet teria realizado algumas pinturas. Quase foi capaz de sentir a água gelada que descia das montanhas, ouvia o murmurinho do curso do córrego. Do lado de fora de seu apartamento, um rio chamado Avenida Pacaembu rugia com buzinas.

Porém eu não tinha mais tempo porque ele aproximou seus lábios até minha boca: um beijo caloroso, conciliatório, eu-te-encontrarei-no-meio-termo-mas-não-além. Até que ele se deu conta o quão faminto o meu beijo estava. Eu desejava saber calibrar o meu beijo da mesma maneira que ele fazia. Mas a paixão nos permite esconder mais, e naquele momento no córrego de Monet, se eu desejava esconder qualquer coisa sobre mim nesse beijo, eu também estava desesperado por esquece-lo ao me deixar perder-se nele.

‘Melhor agora?’ ele me perguntou.”¹

Ficou espantado com a capacidade daquele livro ser erótico de maneira tão elegante!

Pensou que em uma tarde como aquela cairia bem um encontro com Henrique, o rapaz era ótimo para aqueles dias em que o corpo só faz querer. Lembrou-se de certa vez quando, após um encontro, Henrique constatou: toda vez que vinha lhe visitar chovia. Quem sabe, então, Henrique traria a chuva? Mas ficou com preguiça só de pensar na preparação que um encontro casual exigia, então aliviou seu tesão sozinho.

Desejava por uma garoa, desejava por um sorvete. Não tinha sorvete no apartamento. Vestiu seus shorts e camiseta, colocou dinheiro no bolso e saiu.

Enquanto caminhava observava as pessoas voltando dos escritórios ou levando seus cachorros para passear. O asfalto crepitando. E eis que mirou em uma visão divina: um rapaz malhado e sem camisa fazendo corrida! Tentou não deixar muito na cara que estava observando e saboreou aquela cena. “Puta gostoso!” Talvez o cara fosse da sua idade.

Lembrou-se de quando passou o verão em um hotel à beira-mar em Maceió. Uma família que vinha da mesma cidade que a dele também havia se hospedado lá durante o mesmo período. O filho mais velho devia ter a sua idade — a primeira vez que o viu de sunga na areia ficou espantado: “Como alguém de 17 anos tem esses músculos? Será que é um ginasta?”. Ele, magricelo, detestava ficar sem camisa ao redor de outras pessoas, detestava se lambuzar de protetor solar e detestava praia — sempre que podia evitava entrar em uma piscina. Então se limitou a ficar lendo os livros do vestibular nas esteiras da orla e admirando o ginasta enquanto ele jogava beach tennis — seu tronco se alongando enquanto ele pulava com o braço direito estirado pra cima para sacar a bola — ou enquanto o ginasta tomava banho de mar — seu cabelo cacheado chacoalhando em uma tentativa de secar a cabeça mais rápido. “Porque é que bate essa tristeza depois de ver um homem muito bonito nadando?” E o assistia sair correndo do mar em direção ao hotel quando uma tempestade tropical pegou o banhista de surpresa.

De volta ao apartamento, tomou o sorvete de flocos — uma avalanche preenchendo sua boca. Respirou aliviado. O dinheiro do lanche também tinha dado para uma Coca-Cola para o jantar. Aproveitou que o fim de tarde se aproximava e foi tomar banho. O barulho da água caindo do chuveiro e batendo no piso fez com que ele demorasse um tempinho para perceber que finalmente estava chovendo.

¹O trecho citado nesta crônica foi retirado do romance Call me by your name (trad.: Me Chame pelo seu Nome), de André Aciman, e traduzido por mim.

Nota: Esta crônica foi produzida para a oficina “Escrever aprende-se escrevendo”, ministrada por Luana Chnaiderman na Escrevedeira.

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pedro a duArte

Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)