Crônica

Enfeitar domingos

Uma crônica sobre um dia de folga

pedro a duArte
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4 min readJul 16, 2021

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Como quem emerge das profundezas, ele despertou. Lentamente as visões que teve durante o sono desapareceram, dando lugar ao som do tamborilado leve em sua janela. “Então vai ser um dia desses”, pensou. E porque ele já havia se programado para fazer nada útil naquele domingo, decidiu tirar um cochilo antes de realmente se levantar. Ajustou o cobertor de microfibra em seu corpo, sentiu-se quentinho. Deixou-se submergir novamente.

Quando se levantou da cama, a manhã já havia avançado um pouco. Colocou a água do café para ferver e arrumou sua cama. Tomou café com leite e comeu um pão na chapa enquanto observava a garoa lá fora. O tempo estava nublado, perfeito para dias de folga — pelo menos em sua opinião. A chuva havia mudado de direção, então abriu a janela do quarto para que o apartamento pudesse respirar.

Momento de decisão: tomaria banho ou simplesmente trocaria a roupa de dormir por outra roupa? Ou passaria o dia de pijama? Lembrou-se daquela vez na qual fez isso: ao chegar à noite sentia-se horrível, talvez o pijama estivesse cheirando mal. Decidiu que tomaria um banho para se esquentar e espantar a preguiça — apesar de ser um dia de ócio, não queria passa-lo procrastinando no celular, indo de uma rede social para a outra.

Terminado o banho, sentia-se quentinho e refrescado. Rapidamente fechou a janela, não queria que seu lar esfriasse. Apanhou dois livros em sua cabeceira: um teórico e um de ficção. Lembrou-se dos versos: “Um dia frio, um bom lugar para ler um livro.” E passou o resto da manhã imerso naquelas folhas, alternando entre os livros a cada mudança de capítulo. Outras pessoas que apreciam o hábito da leitura discutem se o melhor é tomar chá ou café enquanto leem. Ele preferia tomar água — não sabia fazer um chá que não ficasse aguado e café puro deixava um gosto estranho na boca.

Chegou a hora de fazer o almoço. Colocou algumas músicas no modo aleatório para tocar. Picou alho e cebola, colocou água para ferver e lavou o arroz. Deixou o arroz, agora limpo, com a água quente na panela para cozinhar. Cortou um pimentão vermelho e um amarelo (a verdade é que a cor não altera em nada, mas deixa o prato mais bonito), colocou em uma panela com azeite e sal. Cortou uma beringela, colocou na panela junto com o pimentão. Cortou cebola e adicionou na mistura junto ao pimentão e a berinjela — adicionou um pouco de orégano e alecrim para acrescentar mais um saborzinho. Almoçou o arroz e o ratatouille de panela (se aquela era de fato a receita de um ratatouille ele não sabia, mas sua mãe chamava o prato assim).

Uma fumacinha de calor saia da comida. Enquanto mastigava parecia que seu rosto era acariciado — estava delicioso. O alimento descia leve, calmamente preenchia seu estômago. Os falantes de língua inglesa diriam que este prato é uma comfort food (“comida confortável”, ou seja, algo de sabor aconchegante, fácil de fazer, leve de comer). E seguia bebendo água — é de extrema importância manter-se hidratado!

À tarde, depois de lavar a louça e escovar os dentes, decidiu que assistiria a um seriado recomendado por sua amiga. Era uma série infantil, chamava-se Hilda. Contava a história de uma garota que morava no campo e se mudou para a cidade grande — em ambos os ambientes, ela vivia diversas aventuras conhecendo criaturas mágicas. Apesar dos quadrinhos que originaram o folhetim serem britânicos, as criaturas eram inspiradas no folclore escandinavo. Era uma série perfeita para dias como aquele: uma narrativa simples e, ao mesmo tempo, instigante; um mundo diferente que o fazia se esquecer momentaneamente do mundo real. O tempo voou, parecia ser abraçado, a cada episódio, por histórias tão singelas. Os falantes de inglês diriam que essa é uma “comfort series”.

Quando terminou de assistir a primeira temporada já era fim de tarde e com ela veio o famoso “blues de domingo”. Faltava pouco tempo para sua folga acabar, logo mais teria de enfrentar mais 5 dias úteis até o próximo final de semana. Por um instante pensou que seria legal ter um namoradinho para dividir aquele dia — alguém que, como diz a canção, “tirasse os livros da ordem certa”, que “deixasse a janela do quarto aberta”, que “o fizesse esquecer que amanhã iria trabalhar”. Porém rapidamente mudou de ideia, outra pessoa talvez não quisesse seguir essa rotina calma e suave. Talvez ele não estivesse preparado para alguém que “estragasse seus planos”.

Olhou para a janela: uma tempestade se aproximava. Pegou mais um copão d’água e sentou-se na beirada do sofá. Observou a tempestade chegar, pouco a pouco dominando o horizonte até o momento em que ela atingiu o prédio. Ouvia o vento forte assoviando pela corrente de ar em seu apartamento. As janelas balançavam. Água e mais água caindo do céu como se alguém lá em cima tivesse ligado um chuveiro forte.

Com a mesma rapidez na qual veio, a tempestade foi embora. Ele assistiu a força da natureza seguir seu caminho, desaparecendo aos poucos no horizonte. Já era noite. Suspirou profundamente: “Hora de jantar.”

Comeu as sobras do almoço. Arrumou a mochila para o dia seguinte. Fez a barba, escovou os dentes e foi tomar um banho (mais um banho, afinal ele é brasileiro). Vestindo seu pijama de algodão, envolveu o cobertor de microfibra ao redor de seu corpo e apagou a luz do quarto. Bocejou. E deixou-se submergir. Uma nova semana iria começar.

NOTA: Esta crônica foi produzida para a oficina de escrita criativa “A Escrita do Eu nos Detalhes do Mundo”, ministrada por Davi Novaes no Núcleo Experimental.

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pedro a duArte
pedro a duArte

Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)