Memórias

Eu não me lembro

Uma crônica sobre memórias perdidas

pedro a duArte
Published in
3 min readSep 23, 2022

--

Eu não me lembro do Edros. Mas sei que ele era o cachorro de meus avós quando eu era bebê. Era um rottweiler grande. Há imagens de mim sentado no parapeito da janela, ao lado do Vô Paulo, com minha mãe de dentro da casa me segurando pela cintura, enquanto eu dava bolachas de água-e-sal para Edros (do lado de fora da casa). Deve ter alguma fita cassete com o vídeo de mim andando com o andador pelo quintal e o Edros do lado — provavelmente atrás de um cercadinho.

Não me recordo da casa em que meus avós moravam quando nasci — pouco tempo depois eles se mudaram para um apartamento. Não sei o que foi feito de Edros com a mudança. Me recordo apenas da sala de estar da casa: dos móveis de madeira que, na minha cabeça, remontam ao modernismo dos anos 1950. Talvez porque todas as fotografias que tenho em álbuns foram tiradas lá. Por isso, imagino a casa sem porta de entrada ou até mesmo portão.

Eu não me lembro da minha bisavó Celina. Mas sei que quando eu era criancinha (devia ter menos de três anos), fazia careta para ela quando ia visita-la no quarto no qual ela dormia na casa (e, depois, no apartamento) de meus avós. Já um pouco com as memórias e a percepção de mundo bagunçadas, ela se queixava das caretas dizendo que eu não gostava dela. Me lembro de sentir culpa quando me relatam isso; eu gostava dela.

Às vezes, Vó Lena ou minha mãe recriam uma receita de minha bisavó: o X-Celina. Pão francês recheado com carne moída e ovo cozido; dourado com azeite no forno. Essa é a primeira receita herdada pela nossa família; a segunda (na minha cabeça) é a mousse de Tia Nido, nossa doceira oficial.

Eu não me lembro que uma das donas da creche onde fiquei me chamava de “Meu príncipe” e gostava de me colocar em um caixote de papelão que ela deslizava pelos corredores. Eu não me lembro da Alê puxando os cabelos do Osvaldo. Tudo isso me foi contado.

Eu não me lembro exatamente o que me deu a fama de “arteiro” — a não ser o fato de eu ser uma criança animada e extrovertida. O óbvio seria se fizessem alguma brincadeira com meu nome, Pedro Alves, e Cabral, mas no fim fui chamado diversas vezes de Pedro da Arte. Por isso hoje assino como pedro a duArte.

Eu não me lembro do dia que conheci minha melhor amiga Porto. Mais de uma década ao lado dela e eu simplesmente não consigo me recordar como foi a primeira interação que tivemos. Sei que fizemos amizade porque, antes, ela ficou amiga da Marina entre a 1ª e a 2ª série — eu era amigo da Marina no Infantil 3 e depois retomamos a amizade na 3ª série por causa do Thales. Com o Thales, a Marina voltou; com a Marina, veio a Porto.

Mas me recordo a primeira vez ainda na 4ª série que a professora Yasmin nos colocou para sentar em dupla durante a aula. Já apaguei o conteúdo da da aula, mas lembro de ficar fazendo bagunça com ela: de fingir que o braço de nossos moletons eram iguais fones de lata e transmitiam conversas secretas.

Eu me lembro de muita coisa da Porto. Dos filmes que vimos juntos no cinema; de todas as vezes que a arrastei para ver a nova peça que Denise Fraga levou para Campinas; de todas as vezes que ela viu uma apresentação da minha escola de teatro; dos dois anos nos quais fizemos aula de teatro juntos; das brigas; das irritações; das tardes jogando Age of Empires; das tardes jogando Wii; das vezes que ela vem me visitar em São Paulo. Talvez desse para escrever uma novela de nossa amizade.

NOTA: Este texto foi escrito para a oficina “A Memória como Matéria Prima da Literatura”, ministrada por Ingrid Fagundez na Escrevedeira.

VALE A PENA LER DE NOVO

--

--

pedro a duArte

Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)