Crônica

Manhã

pedro a duArte
pedro a duArte
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4 min readApr 23, 2021

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Com desgosto, desligou o despertador. Como o celular já estava em suas mãos, considerou dar uma olhada no que as pessoas tuitaram durante a madrugada só para ficar mais um tempinho embaixo das cobertas. Porém lembrou que gostava da primeira aula do dia e não queria chegar atrasado. Jogou de lado a manta pesada e se levantou da cama. Guardou o travesseiro e a manta no armário, estendeu a colcha na cama. Abriu as janelas deixando o ar gelado da manhã entrar. Por um instante, contemplou as três colinas do auditório Simón Bolívar antes de começar o dia.

Estava usando um pijama de calças e mangas compridas, porém mesmo assim não se sentia aquecido. Foi para a cozinha, ligou a cafeteira. Pegou sua toalha na lavanderia, ligou o aquecedor. Tomou um banho escaldante e, ao vestir-se, optou por uma cueca boxer em detrimento da slip porque imaginou que ela o deixaria mais quentinho. Vestiu uma calça jeans pesada, uma camiseta (na expectativa de que ao meio-dia a temperatura já teria aumentado) e por cima dela um casaquinho de pano fino e por cima dele uma jaqueta.

Devolveu a toalha para o varal na lavanderia, desligou o aquecedor. Pegou o café pronto, misturou com leite quente. Tomou café da manhã enquanto escutava Café da Manhã — sentia-se obrigado a estar a par das notícias. Escovou os dentes ainda ouvindo o podcast. Passou protetor-solar no rosto para proteger sua pele dos raios de sol e do ar seco dessa época do ano.

Colocou a mochila nas costas e um gorro na cabeça. Saiu para o hall, entrou no elevador. Cumprimentou com um aceno de cabeça o vizinho que vestia terno cinza. Andaram juntos até o portão do prédio. O vizinho foi para um lado da rua, ele iria pelo outro. Respirou fundo, pôs as mãos nos bolsos, levantou a cabeça e iniciou sua caminhada diária de 30min até a faculdade.

Seu caminho tinha início na ponta oeste do Elevado Pres. João Goulart. Da ponte, ele podia ver a Avenida Pacaembu, com árvores vistosas em seu miolo onde passa a ciclovia — ela se estendia sinuosa até o Estádio. Realmente, é um bairro muito bonito. Decidiu que hoje iria pela Conselheiro Brotero, quem sabe a subida ajudaria a aquecer suas articulações.

Em manhãs cinzentas como aquela lembrava-se da canção de Djavan e desejava um bom lugar pra ler um livro. E foi caminhando pelo bairro observando-o despertar. Ainda havia poucos carros passando na rua. As lojinhas estavam abrindo, senhoras idosas compravam remédios na farmácia, crianças caminhavam com seus pais até a escolinha. Todos os transeuntes tão empacotados por casacos quanto ele.

No percurso, passou por diversos prédios modernistas com grades de ferro na frente, separando-os da calçada. Seu professor de cenografia uma vez lhe contou que no início não era assim: não havia grades e Higienópolis era como um grande parque já que os prédios modernistas tinham seus jardins abertos, conectados com a rua. Mas a criminalidade aumentou e os ricos da região, temendo assaltos, ergueram as grades — alguns, pensando que dessa forma manteriam o espírito do modernismo vivo, colocaram muros de vidro.

Passando aquele cruzamento horroroso entre a Dona Deola e o Samaritano, olhou para o outro lado da rua e observou o portão de um prédio. Esperou um pouco para ver se o Alê ou a Vicky sairiam de lá para caminharem juntos até a faculdade. Mas Alê sempre estava atrasado e Vicky provavelmente já estava no campus.

Optou por dar uma pequena volta: chegando na Rio de Janeiro, não desceria para a Alagoas pela José Pereira de Queirós, mas seguiria pela Piauí até a praça Vilaboim. Queria ver o único prédio modernista do bairro cujo jardim ainda era conectado com a calçada, o Louveira. Era seu prédio favorito. Não só pela beleza arquitetônica, mas principalmente porque seu filme mais querido, De onde eu te vejo, foi filmado ali. As árvores do bairro Higienópolis e da praça Vilaboim traziam certa humidade para a neblina da manhã, congelando seu nariz.

Chegando no campus, atravessou as catracas do G2. Entrou no Prédio 3 e passou pelo Cenin pra ver se tinha alguém conhecido na sala de computadores. Desceu as escadarias até a Beverly e lá encontrou seus amigos do Coletivo Q+, porém estava sem carisma para uma conversa mais demorada e só acenou para eles.

Finalmente entrou no Prédio 5. Chegando na sala, dirigiu-se ao canto onde seus amigos estavam. Ele abraçou de lado sua melhor amiga. O restante do grupo olhou para ele. E porque pressentiu uma expectativa no olhar deles, respirou fundo, abriu a boca e deixou escapar os pensamentos que rondavam sua cabeça durante toda aquela manhã:

- Isfriô…

NOTA: Esta crônica foi produzida para a oficina “Por Dentro da Crônica”, ministrada por Fabrício Corsaletti nA Escrevedeira.

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pedro a duArte
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Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)