Crônica

Os Pôsteres e Eu

Uma crônica sobre imagens

pedro a duArte
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5 min readJul 9, 2021

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Por causa da pandemia e da quarentena, minhas aulas na faculdade passaram a ocorrer remotamente. Eu morava em São Paulo, capital, e agora voltei para minha cidade natal, Campinas. Todos os dias nos últimos 18 meses me sentei diante de minha escrivaninha (lotada com diversas pilhas de livros, folhas de fichário e canetas espalhadas) e olhei diretamente para a tela do meu laptop e assisti às aulas. Durante 18 meses fiquei estudando no meu quarto de infância/adolescência e essa era minha vista em quase todos os momentos do meu dia.

Se eu desviasse meu olhar para cima me daria conta que esse tempo todo estava sendo observado por ela; que é considerada a grande obra-prima da humanidade quando se fala em pintura. Um pôster com a reprodução em tamanho real de La Gioconda (conhecida popularmente como Mona Lisa), de Leonardo da Vinci, fica pendurado um pouco acima do nível do meu olhar — o suficiente para passar desapercebido quando se está com outras coisas em mente.

Agora estou olhando para ela. E ela olha de volta para mim. Acho que ela é a única pessoa que realmente ainda fica bonita de sobrancelhas raspadas. Seu meio sorriso parece me dizer: “eu sei o que você faz em seus momentos de intimidade.” Quantas vezes ela já me viu trocando de roupa…!

Esse pôster foi comprado na exposição “Leonardo da Vinci: A Exibição de um Gênio” em 2007 quando ela estava na Oca, em São Paulo. Eu tinha 9 anos na época. Quando a gente fala em itens de decoração, normalmente procuramos povoar nossos quartos, nossos lares com objetos que reflitam a nossa personalidade, nossos gostos pessoais. O Pedro de 2007 era obcecado pelo da Vinci e foi na exposição duas vezes (a primeira com a escola e a segunda com a família — visita na qual ele soube reproduzir de cor tudo o que havia sido dito pelo guia da visita escolar). O Pedro de 14 anos depois ainda aprecia o trabalho do mestre italiano, mas já não sabe dizer se escolheria uma reprodução de uma obra dele para pendurar em seu apartamento.

Vocês vão me desculpar, mas eu não faço a menor questão de viajar até Paris pra ver a Mona Lisa em uma sala abarrotada de turista — acho que seria mais proveitoso apreciar com calma e distanciamento social as outras obras presentes naquele museu.

Na verdade, tenho certeza disso porque em 2019 visitei a exposição “Tarsila Popular” no MASP, fiz questão que O Abaporu fosse a última obra sobre a qual meus olhos repousariam. Quando cheguei no nicho lá no fundo da sala onde ele se encontrava evitei ao máximo olhar pra ele — na hora certa, fechei meus olhos e uma amiga minha me posicionou diante dO Abaporu. Realmente foi uma experiência única ver aquele quadro ao vivo pela primeira vez (e ainda por cima em solo nacional): aquela pintura sobreviveu quase um século de história e agora estava diante de mim — ouvidos atentos perceberiam as histórias que ele contava, causos vindos de antes mesmo de 1928 quando foi concebido. Foi um momento muito bonito que guardo comigo.

“Procissão” (1941), de Tarsila do Amaral (1886–1973); óleo sobre tela, 50.00 cm x 61.00 cm. Acervo: Associação Paulista de Medicina (APM). Reprodução Fotográfica: Romulo Fialdini.

Mas estaria mentindo se dissesse que aquela obra foi a mais interessante que vi naquela exposição. A pintura que mais me impressionou foi produzida em 1941 e se chama Procissão. Retrata um grupo de devotos que carrega uma estátua de algum santo em uma festividade católica. Foi esta pintura que me fez entender a genialidade de Tarsila do Amaral, não O Abaporu. Linhas diagonais formam losangos na pintura e, ao mesmo tempo que geometrizam a imagem também criam uma dupla perspectiva. A técnica é primorosa e quando a unimos ao tema percebemos que somente Tarsila, em sua singularidade, poderia ter feito aquilo.

É por isso que preferiria muito mais visitar um pequeno museu na Europa e descobrir uma pintura do Vinci que eu ainda não conheço.

Atrás de mim, no meu quarto, há dois outros pôsteres, pendurados em cima da cama. O pôster da série da BBC Sherlock e um pôster onde os personagens da série Friends reproduzem a foto icônica dos operários almoçando em uma viga da construção de um arranha-céu. Ambos os pôsteres pendurados em meados de 2014. O Pedro de 16 anos de idade adorava assistir essas séries. O Pedro de 2021 acha a 4ª (e, se deus quiser, última) temporada de Sherlock vergonhosa; o Pedro de 23 anos não aguenta mais Friends (pelamordedeus, gente, o último episódio foi ao ar quase duas décadas atrás, tem tanta coisa nova pra assistir e comentar, desapega!).

O fato é que nossos gostos mudam. Se você entrar nesse quarto para o qual voltei, quem sabe tenha uma ideia (superficial) de quem eu era na minha adolescência. Hoje eu não gosto de escolher um único filme ou livro como favorito porque tem tanta coisa legal e diferente por aí que fica difícil fazer uma escolha tão definitiva. Eu não acredito em usar alguma obra de arte para descrever minha personalidade porque ficaria trocando de obra o tempo todo. Então prefiro decorar o ambiente onde vivo com objetos neutros, preferencialmente que não façam referência a cultura pop.

Talvez seja por isso que eu nunca tenha feito uma tatuagem. Já pensou se o meu gosto muda e eu já não ter mais tanta paixão pelo desenho que inscrevi no meu corpo e o que ele representa?!

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pedro a duArte

Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)