Crônica

Os Peripatéticos

Uma crônica sobre silêncio

pedro a duArte
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4 min readApr 10, 2022

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Estamos voltando a pé para casa. Eu e ele. O caminho é longo; ao todo, dá 1,4 quilômetros. Sempre conversamos animadamente: ele, sobre Cinema; eu, sobre Teatro; nós, sobre a faculdade, nossos projetos, nossas vidas no interior antes de virmos pra cá, o que fizemos (ou não fizemos) no último final de semana. Durante a conversa, nossos passos entram em sincronia. Dois peripatéticos descendo a Rua Conselheiro Brotero em direção ao Minhocão.

—“O West Side Story do Spielberg é insosso! Tecnicamente, é perfeito, mas e daí?” — “É que, na época, tinha chances de minha irmã também se mudar pra SP, aí achamos melhor…” — “Aquela aula é horrível, eu não entendo qual a serventia de uma disciplina que…” — “O que é legal da dramaturgia desse cara é que, se você pega o texto pra ler, percebe que ele tá reduzindo a forma teatral ao seu mínimo essencial.” — “Então, eu moro com um amigo, a gente se conheceu porque trabalhamos juntos no…” — “Espera até chegar no 7º semestre, porque além disso tem o TCC e você precisa…” —

Não mais que de repente, o assunto encerra. Me sinto exausto depois de quatro dias seguidos em que tudo o que podia dar errado deu. Quando nos encontramos, ele disse estar cheio de coisas para fazer na tarde de hoje e que ontem não parou nem por um segundo, prazos a cumprir se acumulavam. Em um mesmo instante, nossas baterias sociais entram no modo economia de energia. Sem conseguir pensar em algo novo a dizer para o outro, permanecemos quietos.

A rua assume a postura de oradora. A descompressão do pistão de um ônibus que parou no semáforo. Uma buzina ao longe. Estacas martelando metal em uma construção próxima. Um freio chiando no asfalto. Os frentistas do posto atendendo os clientes.

Eu quero quebrar o silêncio. Tantas coisas que ainda tenho para comentar - uma reflexão inteligente, uma piada espirituosa. Parece que a continuidade da amizade depende da continuidade da conversa. Tantas coisas que eu quero dizer, mas não sou capaz. Tantas coisas que eu preciso que ele saiba. Coisas que devem ser reservadas para o momento certo.

Mas o momento pede que a gente escute.

O farfalhar de folhas das árvores balançadas pelo vento de outono. A respiração lenta que ele tem. O trotar do tênis de corrida de uma mulher que utiliza o horário do almoço para fazer exercícios. O piado discreto dos passarinhos. O metal de uma garrafa d’água batendo contra um caderno dentro da ecobag dele. O ruído das rodas do skate de um adolescente. O latido excitado de dois cachorros que se encontram durante um passeio. O tecido da perna do shorts dele roçando na outra perna quando ele caminha. Risadinhas de crianças esfomeadas saindo da escola. O tilintar de copos e talheres de um PF - o cheiro de carne e legumes se confundindo com o chiado dos vapores que escapam da cozinha.

Um tempo de suspensão que, para almas inquietas, parece vazio. É apenas depois que você se sente confortável em compartilhar o silêncio com alguém, encerrada a travessia do Cabo da Boa-Esperança, que se conhece a verdadeira intimidade. Nela, as coisas não precisam ser ditas, vocês sabem.

O momento pede que a gente observe.

Ele é um pouquinho mais alto que eu. Veste um short bege e camisa estampada. Leva seus pertences em uma ecobag de algodão cru. Seu passo é lento e tranquilo; o meu andar é apressado e vigoroso. Percebo que sua íris muda de cor dependendo da luminosidade, seus cachos dourados reluzem. As silhuetas das folhas de uma árvore transformam sua face em uma pintura cubista. Seu rosto parece inexpressivo, porém percebo que alguma coisa povoa sua mente. Calmo, ele olha para o chão. Depois, para frente. Estica a cabeça para ver melhor o que acontece à direita.

O sinal ainda está fechado para pedestres. Ele avança sobre a faixa, calcula errado o momento de fazer a travessia. Seguro seu braço, o puxo para trás - tento ser delicado, apesar da urgência. A moto passa zunindo. “Meu deus, você é um perigo!”, brinco. Ele debocha de si: “Ah, eu não ligo, mesmo!”. “Só que você ainda é novo no bairro, não aprendeu o sentido do fluxo das ruas.” É verdade, mas começo a exagerar: “Se você morre, o responsável sou eu! Quem liga pra avisar sua mãe, sou eu! Imagina a situação?!”. Ele ri - e assim o papo recomeça.

Sigo tão envolvido por sua companhia que, quando chegamos em seu prédio, sempre acabo ultrapassando o portão - como se ele fosse seguir comigo até o fim. Por isso, a despedida é sempre a distância: com ele ainda segurando o portão, seu corpo metade para dentro, metade para fora; e eu indo, meu torso alongado para frente.

Ele me pede: “Até amanhã?”

Eu lhe prometo: “Claro.”

Nota: Esta crônica foi produzida para a oficina “Escrevendo o Real”, ministrada por Ingrid Fagundez nA Escrevedeira.

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pedro a duArte

Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)