Quando chove
Quando chove na cidade eu lembro de você.
Lembro do cheiro de terra molhada que tanto te encantava. Ainda que eu soubesse que, na verdade, esse odor é fruto de uma reação química do solo com bactérias, era lindo te ver apreciando esse aroma, tão simples, mas que para você superava qualquer outro perfume.
Lembro da felicidade genuína, do seu riso frouxo de menina nas tardes em que você se aventurava a sair sem sombrinha e, parada nas calçadas da cidade, deixava a chuva lavar o peso da rotina dos seus ombros. Eu sempre avisava para que não esquecesse o guarda-chuva, mas você nunca se importou muito com esses lembretes. Acho que o olvidava de propósito para ter esses, nas suas palavras, momentos de reconexão.
Lembro das vezes em que seus pés nus tocavam o chão a dançar pela rua, enquanto a chuva banhava seu corpo, seu rosto, seus cabelos cor de ébano. Eu me preocupava com possíveis resfriados e te recebia à porta de casa já com antigripais e toalhas secas. Você apenas ria e me chamava exagerada.
Lembro dos resfriados que, como eu previra, foram causados pelas aventuras pluviais e te impediam de fazer mais do que apenas apreciar esse cair pela janela. Você encarava a cena com uma xícara de chá nas mãos e sorria de canto, satisfeita, perdida nas lembranças da infância em que você banhava-se nas águas que jorravam das calhas da casebre em que vivia. Eu ralhava, dizia para você se cuidar mais e você apenas me olhava com manha e pedia para que eu fizesse a receita de canja de minha avó. Nunca resisti a essas olhadas. Cedia sempre.
Lembro das vezes em que o barulho da chuva foi sinfonia para nossas tardes de preguiça e de volúpia. São Pedro regia as nuvens com maestria enquanto nossos corpos, apesar do clima ameno, permaneciam quentes de desejo. Não demorava muito, também, para que você adormecesse em meus braços, embalada por tão suave música, unindo o corpo nu ao meu, à procura de aconchego. Adorava te admirar assim, serena, com os lençóis emoldurando suas curvas. Você mal sabia, mas era nessas horas em que eu te achava ainda mais linda. Despida de roupas e aflições a vagar no mundo onírico da mente.
Porém, também lembro que foi numa tarde chuvosa em que você se fora. Abriu a porta e saiu. Ação rotineira que te vi fazendo em tantos outros momentos. Mas, dessa vez, fora definitivo: a porta nunca mais se abriu com você passando molhada — nem seca — por entre ela. E lá fiquei. Esperando, ainda com o sentimento de pós discussão em meu peito, para que você voltasse e eu te abraçasse em perdões mudos. Só que você não veio.
Ainda hoje, a chuva, que aprendi a amar por sua causa, me faz lembrar de você. A memória é um território traiçoeiro, é fato. Quando julga-se que algo está, enfim, superado, detalhes podem fazer com que todo o progresso de cicatrização seja perdido: um perfume, uma música, um clima…uma garoa. Comigo não foi de outra forma. A diferença é que não me sinto melancólica, como é de se esperar, suponho. Sinto-me feliz.
Você, que sempre me pedia para aquecer-lhe nesse clima , hoje, ao cair de um chuvisco, é quem aquece meu coração. Obrigada por isso.
Espero que você esteja dançando, daquele jeito só seu, na garoa em algum lugar dessa cidade. E que também esteja feliz. .