Reecontro do eu

marina
Pensamentos Poéticos
3 min readMar 11, 2020
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Por muito tempo, a escrita representou para mim uma válvula de escape. Era por meio dela que eu desaguava todo o sofrimento, júbilo, as aflições e expectativas do meu ser. E era fácil. Qualquer pedaço de papel, aliado à uma caneta, tornava-se um refúgio, um mundo imaginário, um porto seguro para o qual eu migrava sempre que a realidade pesava sobre os meus jovens ombros.

Amigos, tinta, papel e eu formávamos uma trindade perfeita. Uma união trina de consentimento e fluidez mútuos. Completávamos uns aos outros ao passo que onde terminava meu punho, começava o corpo da caneta, que, por sua vez, zunia avidamente sob o papel, rasgando sua superfície e maculando-o com sua tinta. Perfeita e calculada sincronia: entendiamo-nos.

Não sei bem por que — e me falha a memória de quando — começamos a nos distanciar. Caneta, agora, era demorada, desanimada. Papel recolhia-se e engilhava-se com a umidade da gaveta em que fora esquecido. E quanto a mim? Bem, eu não tinha mais o que dizer sobre as coisas. Andei, por tempos, desacreditada das filosofias que outrora costumava ter como máxima e, por isso — e talvez pelas atribulações e responsabilidades do cotidiano — , me desconectei da fonte criativa que jorrava de meu peito sem muito esforço.

Passei alguns anos assim: brigada com meus amigos, antes tão queridos e indispensáveis, folha e tinta. Sentíamos falta uns dos outros, é fato. Mas a conexão, por mais que eu tentasse, já não era mais a mesma. Dediquei-me, então, à vida real e embolsei os lirismos dantes tão recorrentes. Uma decisão desacertada.

A vida, então, perdeu a cor e, minha alma, o mesmo. Afastei-me de mim e deixei-me ser devorada por pensamentos que não eram mais extravasados. Então, eles transbordaram. Por vezes estive à beira do precipício do ser, tentada a cair e sucumbir às dores do âmago. Mudei. Vi versões de mim que jamais havia sonhado viver, ser. Mas a ausência, a falta de algo para compartilhar essas vivências era uma constante. Simples de ser solucionada, é verdade, porém difícil de ser executada. Continuávamos separados, os dois e eu.

Inesperadamente, num dia qualquer, sem planejamentos prévios ou fixos, apanhei-me fitando uma antiga gaveta, muito usada em época remota, mas hoje esquecida na memória e na poeira. Algo me atraía. Fui até lá e, ao abri-la, deparei-me com meus velhos companheiros e suas crias: textos, rascunhos e pensamentos antigos dos quais um dia me orgulhei.

Li-os.

Em meio a tantas palavras e rabiscos de meus eus anteriores, encontrei refúgio. Reli conselhos que escrevi para uma versão mais velha de mim. Dei graças por isso. Precisei mergulhar em faces ancestrais do meu eu e, paradoxalmente, aconselhar-me para que o óbvio tornasse-se, enfim, claro: escrever cura.

Nunca deveria ter desfeito-me de restaurador hábito. Os horizontes, agora, parecem infinitos novamente. Enxergo possibilidades. Respiro liberdade. Aspiro metas. Minhas costas relaxam, enfim, do peso que carreguei por tanto tempo enquanto que meu pulso retesa: sou eu fazendo morada em mim uma vez mais.

Bem vinda. Senti sua falta.

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