O primo rico não sabe fazer contas

Paulo Pilotti Duarte
here be dragons
Published in
5 min readDec 28, 2022

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A internet é povoada de pessoas bem-sucedidas que vivem nababescas vidas em resorts pelo mundo. Na internet, parafraseando Fernando Pessoa, só existem príncipes.

Nessa realidade abjeta – porque mentirosa – os coachs e os vendedores de sonhos – ou cursos – se emsbaldam com pessoas pobres que se endividam diariamente na busca pelo padrão de consumo dos outros.

Sim, dos outros, porque essas pessoas não tem a possibilidade de ter acesso a coisas materiais a qualquer momento. Essas pessoas vivem no limite máximo da sua renda (normalmente negativamente, inclusive) porque tudo o que elas ganham vai ser consumido durante o mês com aluguel, alimentação e contas fixas (energia, condomínio, água).

Quem ganha pouco não tem capacidade de planejar a longo prazo. Se você ganha R$3k mensais, a sua capacidade de planejamento financeiro é quase zero, a sua liquidez não existe no final do mês. Você, amiguinho da internet, não ganha mais do que a maioria das pessoas porque fez melhores escolhas, você ganha mais do que a maioria das pessoas porque teve maior acesso a oportunidades.

Ademais, as pessoas que não tem acesso a coisas materiais (e aqui é questão de não ter acesso mesmo e não de ficar pensando duas vezes antes de fazer uma compra mais cara) ainda assim são bombardeadas pela mídia e pelo consumismo – sem falar que elas não tem acesso a coisas duráveis (carro zero, moradia nova, eletrônicos e eletrodomésticos novos e de marca superior ou meso roupas boas) – o que diminui muito a vida útil dos bens não-duráveis que elas obtém, e isso acaba sendo mais caro no final das contas.

Muitas pessoas tem o mesmo pensamento sobre a periferia: (e os reproduzem sem pensar no contexto, exatamente o oposto do que o vídeo faz) eles gastam mais do que ganham, precisam de educação financeira.

Isso para mim é um problema sério de sociedade, porque enxerga o problema na pessoa (que vive fora de suas posses) e não no sistema que paga menos do que deveria para que as pessoas pudessem ter uma vida boa. Se você pode se dar ao luxo de comprar algo por impulso ou para se sentir melhor (se não faz, não é um ponto válido da questão aqui); um pobre, ou mesmo uma pessoa de classe média baixa, não tem essa opção e, quando faz, acaba arcando com o sentimento de culpa que isso acarreta (seja o oriundo do próprio pensamento ou da pressão externa de pessoas que enxergam a vida como você expôs aqui).

Faço aqui não uma crítica às pessoas, mas uma crítica ao pensamento delas (pensamento torto). Provavelmente essas pessoas nunca pensaram fora da sua realidade e da sua capacidade de consumir. Acreditam que essa ideia de “acesso” é algo que todas as pessoas tem e ignoram que apenas aqueles com uma renda acima da média salarial brasileira é que realmente usufruem desse acesso; pra esse público, esse tipo de acesso sempre foi dado como certo. Contudo, para muitas pessoas, comprar uma pizza de R$80 impacta no orçamento do mês inteiro. Mas e aí? A pessoa não pode ter o “luxo” de comer um pizza? O problema é a pessoa que comprou a pizza ou o salário de fome que ela ganha que a impede de ter acesso a algo tão trivial?

Vou mais além. Reverberou esses dias a frase do “Primo Rico”, um desses coachs, de que “com seis meses de estudo de lógica de programação você pode ganhar R$5k mensais”.

Eu escuto muito as pessoas falando de TI e dos salátrios bons, não é exclusividade do parente abastado. E mais ainda eu vejo as pessoas mandando “vai estudar programação” e aconselhando outras pessoas a mudarem completamente de área profissional.

Em Porto Alegre eu vi muito pouco desses salários decentes.

Aliás, eu pulei a parte do “salário decente” de programador. Trabalhei com TI por +10 anos e nunca bati nesse pessoal. Aliás, minha última posição foi na Dell (2019) e eu ganhava menos de R$4k (como todo mundo que entrava, a Dell não negocia salário, ao menos não de fora da gerência) e tinha que ter nível superior completo (podia ser em qualquer área, desde que começasse a estudar TI depois e soubesse o necessário para a função no ato da contratação). Pelo plano de carreira deles, demoraria uns 6 anos para chegar em R$8mil bruto. Acima disso, só com pós-graduação na área.

Quando eu fazia Matemática ainda trabalhei na HP também. E estagiei na Tlantic, Microsoft (naquele centro de inovação) e em duas empresas menores de segurança de informação.

Ainda daria pra falar da experiência de vários amigos que se formaram em Matemática Aplicada, Estatística e Computação. A maioria acabou mudando de área (principalmente para a saúde) depois de alguns anos com TI. Muitos chegaram a ter uma carreira sólida pra web, PoS e SL/CA. Hoje, tenho dois amigos que se deram realmente bem na área. Um na China e outro na Alemanha. Ambos saíram daqui sem emprego e foram tentar a vida lá (mas eles tinha bons aportes familiares para conseguir isso).

Existe um bandwagon na web dizendo que “basta ser programador que você ganha bem e nunca fica sem emprego”. Até tem bastante emprego, mas a maioria é trampo merda pagando R$3k para ser o “exército de um homem só” do setor de TI.

Outro mantra que todos repetem sem saber se é verdade é que você deve se mudar pra São Paulo (ou Rio de Janeiro; ou pra fora do país) e trabalhar com TI para ter uma vida digna do Ilãn Musqui. Não é verdade. Mas mesmo se fosse, vamos analisar a própria ideia de sair de casa (e se sustentar sozinho) que isso tudo implica.

Por si só, essa realidade de poder se mudar pra outro estado é uma realidade apartada da maioria. Existe uma diferença muito grande entre “me mudei pra SP pra ganhar 3K PJ e morei num quarto alugado” e nem sequer ter essa possibilidade na vida porque muita gente depende de você em casa. Conheço muitos amigos que ficaram na periferia de Porto Alegre, da época de infância e adolescência, que cuidaram de irmãos mais novos ou de avós e pais quando estes estavam de tal sorte deteriorados do trabalho diário, sem ter muita opção na vida além de trabalhar numa fábrica. Mandar um trabalhador desses estudar programação e se mudar pra SP, abandonar os pais a própria sorte, para seguir o sonho coach é imbecilidade.

Masm vá lá, a questão nem é medir a desgraça ou ganhar pontos na escala charlinho.

A questão inicial é o que leva as pessoas a consumir à prazo, pagando juros e querer uma vida com mais coisas materiais? Simples, propaganda.

Não existe essa opção pra maioria das pessoas, mas, mesmo assim elas estão inseridas numa sociedade de consumo que ao mesmo tempo que vende o bem material como fonte de felicidade, cobra a poupança como fonte de virtude; assim as pessoas adoecem mentalmente e fisicamente, vivem uma vida de privação ao mesmo tempo que enxergam tudo de melhor que o dinheiro pode trazer.

Tudo o que se fala pode ser real e até necessário, mas resvala quando ignora que as pessoas às vezes não tem essa opção (se mudar, estudar, trabalhar com salários baixos, popupar etc) e, principalmente, coloca a culpa (mesmo que inconsciente) nas pessoas e não no salário de merda que elas ganham.

Se você teve seu choque de realidade e condições de mudar, saiba que essa não é a realidade da maioria das pessoas e que o choque delas é diário.

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