Primaveras no inverno: 31

Renata Reis Bastos
Perdi o sono e escrevi
3 min readDec 26, 2021

Autoria: Renata Bastos

Foto: Renata Bastos

Quando ela abriu os olhos, o sol ainda descansava. Era madrugada e o relógio parecia parado em um tempo onde pensamentos dançavam na penumbra. Criou histórias, sentiu saudade, repensou motivos e por fim, levantou da cama. Preparou o chá quente na caneca de sempre. Subiu as persianas da pequena cozinha e sentiu alívio ao ver que a cidade ainda estava coberta de branco. Imaginou luzes de Natal durante o ano todo, mas os olhos piscaram, os primeiros raios de luz bateram na porta e o vento frio do inverno escandinavo suspirou pelas frestas: wake up!

Ela piscou de novo e pensou ser bobagem. Deixou a caneca com o resto do chá quase frio sobre a mesa. Pegou a nova agenda em branco, mas tão preenchida com “quandos” e tentou aquecer as mãos nos bolsos largos que, de tão cheios de sonhos, eram apertados. As luvas davam calor à alma durante o percurso até a estação de trem. Os pés gelados quase desistiram do caminho, mas o compromisso estava marcado na cafeteria que, por muito pouco, não se escondia dentro da estação central.

Lá as mãos se cumprimentaram, palavras de aconchego e saudade se esbarraram. Então ela fez de novo. Pensou. E como pensou! Rápido demais ou apenas demais. Falou muito de uma vez só. Falou certo e, mesmo que muitas vezes errado, genuinamente. Mostrou o que sentia, não aprendeu diferente. Esperou o mesmo, mas recebeu palavras disfarçadas. Ignorou. Eram para ela, mas não sobre ela.

Um pouco de açúcar foi bem no café e um resto de brisa tirou o foco da conversa. Retirou a pequena agenda do bolso e sorriu para os espaços a serem preenchidos enquanto olhava para cima e para a direita como sempre fazia quando estava imaginando. Suspirou!

Sonhou que o suposto sobre ela não fosse julgado quando até ela, aos 31 anos, ainda se desconhecia. Quando pensava que se conhecia, ela olhava para o ontem e já não se reconhecia. Ainda pequena, ela deixou o raso para quem não enxergava suas próprias águas como profundezas a serem exploradas e se afogou na sua única certeza que era do quão incerta ela era. E se lembrou que sabendo tão pouco sobre si seria ingenuidade ou arrogância pensar que poderia achar sobre o outro e deixou que achassem sobre ela. Sabia que nada sabiam e que quanto mais afirmavam menos a conheciam.

Ela era questionamento e esperava morrer sem resposta. Afinal, tudo que se afirma tem por definição um fim e se desvendar requer tocar o outro e a si mesmo com os olhos nus e ver o mundo com sorrisos que nunca se fecham. E assim como uma velha aprendiz que precisa se despir de velhas roupas e esvaziar as bagagens pesadas demais para seguir seu o caminho, acordava todos os dias e se deparava com uma Renata diferente. Ainda bem!

--

--