“Amamos a las mujeres”: Julia Holter e Ibeyi ao vivo em São Paulo

Izabela Costa
Perdidos No Ar
Published in
6 min readOct 19, 2016

Sob uma chuva fina e incessante, tão típica de São Paulo, a cidade recebeu na última quinta-feira, 13 de outubro, três das vozes femininas mais relevantes e interessantes da música internacional contemporânea. A estado-unidense Julia Holter e a irmãs gêmeas franco-cubanas do duo Ibeyi se apresentaram na Audio Club, casa de shows próxima ao metrô Barra Funda.

O Perdidos no Ar contou com dois de seus integrantes no meio da plateia e abaixo eles relatam um pouco do que viram, ouviram e acharam da noite. Entre elogios e reclamações, nossos observadores concordam em um ponto: ambos acham R$ 15 um valor exagerado para uma lata de cerveja e surreal até para as produtoras mais açougueiras que estamos cansados de conhecer — e infelizmente financiar — por aí. De uma noite com muitos altos e alguns baixos, esse com certeza foi um dos pontos mais desfavoráveis no conjunto da obra.

foto por: Tonje Thilesen (Google Images)

Julia Holter
por Kaluan Bernardo

Julia Holter é uma cantora, compositora, pianista/tecladista e produtora norte-americana de 31 anos. Seu quarto disco de estúdio, Have You in My Wilderness (2015), foi eleito melhor disco do ano pelas revistas Mojo e Uncut. Ficou também em segundo no ranking da Q Magazine e em quarto no do jornal The Guardian, além de entrar para reconhecidas listas como as do Drowned in Sound, Pitchfork e Stereogum.

Se em seus primeiros discos Julia flertava mais com a vanguarda e arranjos complexos de corda, ao mesmo tempo em que citava Virginia Woolf; em seu último disco ela veste uma roupagem mais pop e as letras passaram a falar sobre relacionamentos. Não significa que ela perdeu o requinte ou deixou de lado a complexidade, só se soltou mais para o mundo. As letras, tampouco, deixaram de ser profundas, só passaram a falar com mais gente.

Tudo isso lhe rendeu certa notoriedade e chegou a atingir o 3º lugar no topo das paradas estado-unidenses. Mas ainda assim ela parece não ser muito conhecida no Brasil. Pela primeira vez no país, Julia e sua banda fizeram show único em São Paulo, no mesmo palco por onde já passaram bandas como Spiritualized, Mudhoney, entre outros. Era o último show da turnê e ela parecia um tanto empolgada.

Na mesma noite, dividiria o palco com as gêmeas Ibeyi e o público estava lá pelo duo franco-cubano. Isso era claro já nas conversas da fila, onde se ouvia que a maioria sequer sabia quem era Julia Holter. Julia entrou com tudo ao som de “Horns Surrounding Me”, uma de suas mais fortes canções. Empostada nos teclados como um maestro, sua postura lembrava, sem exageros, Rick Wakeman. Mas a voz era digna de comparação a Fiona Apple, enquanto a graciosidade era de Cat Power.

A banda também é digna de nota. No contrabaixo estava Devin Hoff, conhecido por trabalhar com bandas experimentais como Nels Cline e Xiu Xiu. Na bateria, Corey Fogel, um verdadeiro metrônomo. Julia faz caras e bocas e aperta as teclas com força enquanto solta a voz, mostrando que não precisa de recursos de estúdios para ser uma grande cantora. Faz sinais de que não consegue ouvir os instrumentos e pede para aumentar o volume. Cada vez que a música acaba, fica claro que o problema não vem da mesa de som.

Poucos segundos de silêncio foram suficientes para reconhecer o infernal barulho de conversa, que parecia uma sala de quinta série sem a professora. A maturidade do público não era tão diferente.

A Audio Club tem um grande espaço de convivência fora da pista. É aberto e tem bar, dá pra conversar tranquilo. Mas o pessoal preferiu ficar em frente ao show, tratando Julia Holter como cantora de churrascaria. Na frente do palco, pessoas de costas para a banda o tempo todo. Pareciam estar ali apenas para guardar seu lugar, sem ao menos olhar para quem estava em cima do palco.

Para ser justo, cerca de oitenta pessoas permaneceram próximos para ver o show. Cantavam, acompanhavam e pediam silêncio. Julia decidiu fazer a apresentação para eles e continuou a se entregar. Emendou grandes singles, como “Lucette Stranded on the Island”, “In the Green Wild”, “Feel You”, “Betsy on the Roof” e “Silhouette”.

Ao fim de cada música, o barulho era mais ensurdecedor. Por mais alto que estivesse o som no palco, maior era o ruído de quem estava na churrascaria-escola-pista. Tomando a posição de banda de abertura ou de festival, que precisa conquistar o público, Julia continuou falando sobre o que era cada música e fazendo pequenas interações. Sua voz mostrava grandes alcances, indo do agudo ao grave com facilidade e naturalidade. Ao vivo, os arranjos de cordas são intensos.

Um dos pontos altos do show era para ser “How Long”, um momento de fortes interpretações. Era pra ser, mas o barulho não ajudava. A artista teve que pedir silêncio, enquanto interpretava. A maioria nem deve ter percebido — estavam de costas e falando qualquer coisa. Nesse momento o tom mudou. O sorriso de Julia desapareceu e ela pareceu entregar a toalha. Vieram só mais três músicas, “Heijinian”, “Vasquez” e “Sea Calls Me Home”. Um tchau com um sorriso amarelo e poucos aplausos. Foi o último show da turnê. E o único que não teve bis na noite. E também ninguém pediu.

No país onde se vaiam atletas para garantir medalhas, se paga mais de R$ 100 para ver seu artista favorito e desrespeitar o outro. Uma grande apresentação de uma grande artista que foi ofuscada pelo desrespeito do público. Ao menos, para quem estava interessado, foi possível conhecer um pouco da grande artista que Julia Holter é. Em cima do palco não faltou arte.

foto por: Maya Dagnino (Google Images)

Ibeyi
por Izabela Costa

Impacto. Foi o que senti quando o duo Ibeyi subiu ao palco por volta da meia-noite. Fosse pela coroa de crespos da vocalista e tecladista Lisa-Kaindé, ou pela energia de sua irmã e multi-instrumentista Naomi Diaz, para os olhos e ouvidos de quem, como eu, pouco conhecia e sabia daquelas artistas, apenas a presença delas já bastou para saber que aquela noite seria especial.

De origem franco-cubana — Lisa e Naomi são filhas do já falecido músico Anaga Diaz (Buena Vista Social Club) — e fortes heranças da cultura iorubá e do candomblé na construção melódica de suas músicas, a dupla foi só sorrisos durante toda a apresentação. E não era para menos: na cidade onde motoristas não dão passagem e pessoas se empurram em vagões de trens e filas, manifestações efusivas de amor e carinho despertam admiração. E elas receberam muito carinho. Ao longo das dezenove faixas reproduzidas ao vivo naquela noite, gritos uníssonos e coros vindos da plateia mostraram para o duo que seus fãs brasileiros são apaixonados: por elas e pela arte que realizam.

Do figurino vermelho, simples, porém elegante, passando pelos instrumentos — teclado e conjunto percussivo — , pelas vozes, naturalmente complementares e chegando até às projeções no fundo do palco, além dos beats e efeitos eletrônicos detalhadamente inseridos, tudo contribuiu na geração de diversas texturas artísticas sobre o palco. Não esquecendo dos aplausos, que fizeram muito barulho também, em especial após os sucessos de “Mama Says”, “Ghosts” e “Faithful”, do disco mais recente Ibeyi (2015). Dividindo suas falas em inglês e espanhol, Lisa e Naomi comemoraram com o público todos os pontos altos do show, marcado pela euforia durante a reprodução do hit “River”, nas duas vezes em que foi tocado (a última foi também o único bis).

A comoção que tomou conta e coloriu o show da Ibeyi foi algo bonito de se ver. E desconhecido também. No final do show, ao encontrar amigos e conhecidos, a pergunta entre todos era a mesma: “como assim elas tinham tantos fãs e a gente não sabia”? A surpresa foi um sentimento que arrebatou plateia, que mesmo já esperando, se surpreendeu com a qualidade musical e performática da dupla. E que também mexeu com as artistas. Elas ficaram extasiadas com a atmosfera criada por aqueles brasileiros, os quais elas estavam conhecendo pela primeira vez, mas que pareciam ser da vida toda, tamanha a sintonia e intimidade a cada música e conversinha.

Destaque também para as canções entoadas em iorubá e à capela pelas duas musicistas. “Eleggua”, que abriu o show, ficou em meus ouvidos e coração como o melhor momento do show e do que representa a música da Ibeyi para mim: uma força da natureza, algo como um rio de margens estreitas. Lindo e simples em sua forma, mas que ao desembocar em correntes maiores toma força e se torna mais forte e arrasador. Como o amor entre duas irmãs e o que dele pode-se criar.

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