Cortes que não sangram

Rafael Marcon
Perdidos No Ar
Published in
4 min readFeb 25, 2017

Sabe quando você se corta com papel sulfite? Aquele cortezinho cretino que não chega nem a sangrar, mas fica te aporrinhando o resto do dia? Não é daí que vem o nome do álbum Cortes Curtos, mas a carapuça serve. O disco solo de Kiko Dinucci, que depois de seis anos de gestação já parecia que ia ficar eternamente às vésperas de sair, também é curto, rápido e pode incomodar em pontos que você só vai perceber depois que já acabou de ouvir.

Com letras mínimas e som ruidoso, o guitarrista do Metá Metá vai cutucando o ouvinte com repetições que tornam difícil ignorar qualquer elemento das canções. “No escuro / uma pedra vira um muro” é toda a letra da faixa de abertura, pra dar uma ideia. Se a provocação não ficasse clara, já vem uma confissão na seguinte, Desmonto sua cabeça. Para terminar essa abertura quase metalinguística, a primeira instrumental do disco é batizada Fear of pop, sacaneando o texto de Bruno Natal sobre um show em que foram apresentadas versões preliminares do repertório de Cortes Curtos.

Só que pra incomodar não basta não ter medo só do pop, e Kiko sugere, algumas cenas adiante - ele próprio pede que o disco seja encarado meio como filme - que também não tem medo do cult, da militância, de pisar fora de seu suposto lugar de fala. Ele, que já foi assunto em bate-boca no facebook por ser um dos muitos homens que compõem a banda de Elza Soares no fim do mundo, enquadra o ódio generalizado como uma cena bisonha em Uma hora da manhã, que tem como locação o Extra da Av. Brigadeiro: quem estaria mais certo ou errado entre um gay xenofóbico, uma nordestina homofóbica e um branco hetero paulista que resolve cantar sobre isso?

Uma tese é que essa ira seja intrínseca à cidade, resumida em “São Paulo / Terra de um beijo só” na faixa que precede a da briga no supermercado. Esse gesto cotidiano que repetimos no automático o tempo todo, quando comparado com os dois ou três beijinhos que se praticam em outros pontos do país, ganha ares de frieza, pressa, até de grosseria, revelando um bocado sobre o paulistano. É o momento mais cinematográfico do disco.

Com o cenário devidamente estabelecido, entramos na sequência mais romântica, que vai da faixa Seus olhos até Inferno particular, e é a área em que se concentram quase todos os vocais femininos das cantoras convidadas, como Céu, Suzana Salles e Tulipa Ruiz. Tratando do amor em termos de inferno, ferida, sangue, expectativas não correspondidas e cuspe, a ideia passada é que não é uma coisa fácil, mas compensa. “Seus olhos / Têm o tamanho da minha ferida” é uma letra que demonstra a beleza a se extrair disso. Tudo gira em torno da forma como Kiko sempre se apresenta, como artista que se aceita torto, sujo, defeituoso. É essa estética do defeito, a única possível em São Paulo, que dá o tom também em todo trabalho sonoro, e que se escancara em Chorinho, tema instrumental de nome delicado e timbres que evocam a poluição, calçada esburacada e congestionamento em horário de pico.

A sequência final começa com um sujeito tentando se jogar do prédio do Banespa e se frustrando com a brevidade do horário de visitação. Corta para a cracolândia, e não é claro para o ouvinte/expectador se o eu-lírico da última faixa, Crack para ninar, é o mesmo Matias que queria pular do prédio em busca de companhia No vazio da morte, já que a letra final é uma das mais curtas do disco. “Me dê a mão / Eu vou cair além do chão” embala o ápice lírico de Cortes Curtos, numa nuvem de barulho que remete muito ao arranjo de Ciranda do aborto, outra empreitada bem sucedida de Kiko no ramo de cutucar vespeiros, originalmente destinada a este álbum, mas que acabou virando a joia da coroa no Encarnado de Juçara Marçal.

Me refiro à dobradinha No vazio da morte/Crack para ninar como cena final porque a última música, A gente se fode bem pra caramba, quando olho para o disco como um filme, me parece muito mais uma sequência de créditos finais, com o elenco celebrando a própria obra que termina e o artista sabendo que se fode, mas que saber se foder é importante. Para lidar com a dureza que é a vida em São Paulo, no mundo e no tempo de agora, Kiko Dinucci faz o que todo bom cineasta tem que saber fazer, corta.

O disco está disponível para audição gratuita no YouTube e para download em www.kikodinucci.com.br , o show de lançamento é dia 9/3 no Sesc Pompéia.

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