David Bowie e a eternidade

Luan Flavio Freires
Perdidos No Ar
Published in
4 min readJan 11, 2016

No último fim de semana, assisti ao documentário ‘The Propaganda Game’. O filme lançado no fim de 2015 (disponível no Netflix, você deve assistir) tenta entender melhor, dentro do possível, o que se passa na Coreia do Norte e, principalmente, na cabeça das pessoas que moram ali. Entre alguns momentos brilhantes, um em especial me chamou a atenção.

A certa altura, Alvaro Longoria, diretor espanhol responsável pelo trabalho, se pergunta como, em um cenário distópico de fome, miséria, autoritarismo extremo, censura e desigualdade, tenha sido registrado um luto tão histérico por parte dos norte-coreanos pela morte de Kim Jong-il, em 2011.

Seria fingimento para não desagradar as autoridades, sempre à espreita? O que Longoria percebeu foi algo mais sutil e interessante. Alguns dissidentes que fugiram do país foram entrevistados pelo documentarista e, claro, denunciaram os crimes praticados pelo regime ao longo do filme. Mas ao falar do episódio da morte do “Líder Supremo da República Popular Democrática da Coreia”, reconheceram: choraram muito e com sinceridade quando souberam da notícia. Quem morria não era o responsável pela manutenção da tragédia daquele povo, mas quem se acreditava ser um deus, uma entidade superior, alguém que poderia superar coisas banais como a velhice e a morte. A verdade é que eles não estavam preparados para aquilo.

Essa imagem me veio à mente quando a minha namorada me ligou hoje, um pouco depois das 6h, para dizer que David Bowie havia morrido. Eu esqueci de carregar o celular durante a noite e a bateria acabou logo depois de ela dizer, chorando: “você não sabe o que aconteceu”.

Eu a conheço. Ela nunca acorda “um pouco depois das 6h”, nem com o despertador no talo. Para me ligar, com aquela voz e naquele horário, vinha coisa ruim por aí. Liguei o celular na tomada e retornei a chamada, já pensando nas palavras que usaria para a consolar. Qual amigo teria nos deixado? Ou pior, qual parente?

“David Bowie morreu.”, ela disse. Com sono (o Globo de Ouro foi longe e o Ricky Gervais estava especialmente inspirado), um pouco aliviado, reconheço, e sem saber o que fazer com aquela informação, que obviamente não processei direito na hora, só consegui dizer: “eu pensei que tinha acontecido alguma coisa”. Aconteceu.

Afaste todos os clichês que ficaram colados à figura de Bowie ao longo das décadas em que ele dedicou a vida à arte. Camaleão, andrógino, hedonista… Nada disso importa agora. Bowie inventou um novo jeito de ser. Aliás, alguns. Para colocar em outros termos, o que vários artistas buscam conquistar ao longo de uma vida, que é se desprender dos clichês que criaram para si mesmos, David Bowie conseguiu só nos anos 70, pelo menos, cinco vezes. Isso, vale dizer, se equilibrando numa corda bamba entre o pop e a vanguarda. Kanye West, Prince, Suede, Lady Gaga, The Cure, Radiohead, Madonna, Nine Inch Nails, Björk, The The, cite quem você quiser. Sempre que a palavra “reinvenção” for escrita pelo site de música pop mais obscuro que houver, será a denúncia de uma dívida com David Bowie.

O fascínio que ele exercia e agora sempre exercerá sobre nós vinha de um não-conformismo quase patológico, irracional. E cada mudança, por mais brusca que fosse, era feita aparentemente sem esforço ou trauma, livre das consequências que seriam sofridas por seres humanos normais caso tentassem se arriscar tão perto do precipício. Até quando o cocainômano que ele encarnou quase o matou em 1976 e fez com que ele perdesse os primeiros anos do filho, Duncan, a experiência serviu de combustível para a Trilogia de Berlim, o ápice da sua discografia.

Como alguém assim pode morrer? A morte tem truques muito previsíveis para enganar uma pessoa como ele. Câncer? Essa é velha! Será que daqui a alguns dias ele aparece, como fez quando matou Ziggy Stardust e anunciou que iria se aposentar?

A agonia em “here I am, not quite dying/ my body left to rot in a hollow tree”, o espanto diante da possibilidade de algo eterno em “and the next day, and the next, and another day”, a figura de Lázaro, a loucura metafísica do clipe de ‘Blackstar’. Estava na nossa cara. Bowie, depois de tanto fugir de si mesmo, capitulou e decidiu escrever os últimos capítulos de sua história — enquanto ele mesmo ainda podia fazer isso. Lázaro morreu e foi ressuscitado depois de quatro dias. Muitos “Bowies” morreram desde os anos 60. David Robert Jones, aquele por trás das máscaras, é o que se foi ontem. David Bowie, o definitivo, agora emerge eterno.

--

--