Quanto custa arte?

INÁ
Performídia
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6 min readOct 2, 2019
brincadeira visual com licitação de Roberto Alvim no fundo.

Primeiro vou começar dizendo de onde eu venho pra te perguntar isso, mas com um pouco de ressentimento em primeira pessoa, do plural pro singular. Eu venho de uma realidade em que arte é só aquilo que a gente vê representado na TV, que a gente não acredita poder produzir, que a gente não acredita poder ver de perto, muito menos ter. Ter? Opa! Aí já tá rolando dinheiro? Ah não, dinheiro é só pra pagar as despesas, comprar uma coisinha diferente pra comer, pagar as parcelas atrasadas do cartão e, se der, comprar uma roupinha nova pra sair domingo. Já trabalho demais, ganho pouco, não posso pagar por arte, não. Mas né por nada, desculpa perguntar… Quanto custa?

Te falar, comecei a conceber esse negócio de arte com os pés no chão, depois de muito tempo de insistência. É, é insistência mesmo, vulgo caminhada tortuosa. Eu disse que tinha ressentimento, mas ele tem razão de ser e deixa ele aí, porque quem não sabe o que é ter pouca ou quase nenhuma escolha, acha que poder escolher é… “natural”. Não, livre arbítrio eu conheci pelas palavras de um pastor que estava parafraseando o Livro Sagrado. Poder de escolha é uma coisa que aprendi conversando com a arte; saber escolher, registrar, abstrair, afundar, assumir formas e criar fórmulas, foi do contato com A COISA não só do contato com as pessoas. Tô falando do que dá pra TER, adquirir, levar junto ou deixar em casa, saber que vai estar sempre ali. Arte gera isso, essa coisa.

Tá, mas e o preço? Quanto custa isso aí?

Eu poderia até finalizar esse texto depois de destacar a diferença apresentada na sentença em itálico, mas calma, muitas águas ainda vão rolar. Valor é diferente de preço. Dois pesos, duas medidas e TCHARÃ, tô falando de resultado qualitativo, o que nutre de verdade. Calma calma, menózada, isso não quer dizer que eu também não tô cansada de fazer arte de graça! E é nesse ponto que tu nem achou que o texto ia entrar, ele vai entrar: agora vamos falar de preço.

Quanto eu paguei pelo meu primeiro curso de balé? Nada, foi de graça. Quanto eu paguei pelo meu curso de audio visual? Nada e ainda ganhava uma bolsa.
Quanto eu paguei pela minha formação em dança numa escola livre? Nada, ganhava bolsa também e foi por lá que fiz minha primeira viagem internacional, a outra foi trabalhando (privilégio?).
Qual o preço da minha graduação de Bacharelado em Teoria da Dança? Nadinha, sou cotista e moro na Residência Estudantil.

Tudo isso custou alguma coisa, claro! Não foi minha mãe quem pagou, muito menos meu pai, nem nenhum parente, também nenhum amigo ou ser humano bondoso. Só pra lembrar: eu sou uma artista pesquisadora em dança, uma linguagem artística, que se desdobra em outras a ponto de me tornar multilinguagem. Mas lembra do que eu escrevi do plural pro singular ali em cima? Nós não nascemos pra viver de arte, apreciar arte, ter arte. Nós fomos e precisamos estar sempre sendo criados pro sustento. Nosso sustento, claro, mas pra acordar amanhã e trabalhar mais, produzir bens pra quem te contratou ou o chefe dele ou o chefe do chefe dele. Não sobra tempo nem dinheiro pra sentar na cadeira de um teatro e absorver uma apresentação de dança. Não era pra ser assim nem era pra ser pra mim, mas é.

Toda a quantia necessária pra uma vida, é medida em dígitos. Uns indivíduos vivem com muitos dígitos, outros vivem com nenhum ou muito pouco. “A arte é pra todos”. E eu sempre pensei enquanto ouvia “é mesmo?”, concluía que era pra mim e seguia com a pulga atrás da orelha. A pulga começou a virar um monstro depois que eu percebi que eu tinha caminhado de um jeito meio lento mas, novamente insistente, pra ser artista e agora eu que nem sequer poderia pensar em gastar alguma coisa com isso, precisava dar um preço pra isso. Isso o meu trabalho, isso os meus motivos, isso a minha mensagem, meu corpo e minhas reconstruções diárias de sentido. Meu deus, qual o preço disso?

Talvez você tenha concluído que quem pagou os meus estudos foi, de fato, os impostos revertidos, sou cria de projetos sociais. Uma taxa que ninguém (que eu conheça!) escolhe se quer ou não pagar, fez eu me tornar alguém muito mais contente a respeito das minhas escolhas depois que eu e a arte nos tocamos, me tornei mais sensível mas não menos preocupada. Preocupada não porque ainda não consegui colocar um preço no trabalho que realizo com o que aprendi, aprendo, experiencio e pesquiso, mas preocupada porque não é com preço do que faço que eu quero me preocupar NA MAIOR PARTE DO TEMPO. Parece um “White People Problem” mas só pra começar, eu não sou white, mas sim, eu tenho um problema. O enunciado é esse diaxo de pergunta que eu coloquei no título, mas o resultado é o meu bloqueio de tentar resolver essa equação porque os números estão errados, foram programados pra favorecer só alguns e desigualdade freia processos, limita escolhas, desequilibra tudo.

Escrevo esse texto pra tentar conseguir ajuda pra responder essas questões-problema, porque eu não quero responder sozinha. Quem cobra não sou eu, é a rotina esmagadora de sobrevivência atrás dos dígitos, pra cobrir as despesas e pagar os impostos, pra poder colecionar arte (quem tem $) ou nem poder admirar (quem não tem $), pra limitar a visão através do poder de compra ou da ausência dele, pra não se dar tempo. Ih… chegou o tempo, pesou o assunto. E pra nada ficar decidido nesse tempo de prosa, questiono mais:

Pagar por arte ou dar valor a arte?
Ó, e pergunta quanto eu tenho na minha conta que eu quero ver alguém achar que eu só estou escrevendo isso porque “tô bem de grana”! Tô cansada, isso sim, cansada de me sentir o Justin Timbarlake em “O Preço do Amanhã” tentando realizar meus trampo na santa paz em pleno capetalismo brasileiro que caga pra patrimônio imaterial (Cultura, no caso) e ainda fica ameaçando a minha “existência improdutiva” e dos meus. Porque enquanto o diretor da Funarte destina mais de três milhões pra realizar montagem teatral e produzir material didático sobre Dostoiévski (CHEGA DESSE HOME!!!), eu tento acordar mais um dia na fé de que o que eu faço tem valor, que é o que me mantém caminhando, já o preço sempre passou batido. Produzir arte com muito não dá, agora nem tem dinheiro pra isso, mas fazer de graça só é destino de pobre, não de rico.
Os porquês estão escondidos. Eu não sou correspondente do povo, mas também sou povo e não quero só pão e circo, quero gerar reconhecimento. Dar valor a arte e permitir seu contágio, me parece a possibilidade de atravessar um portal, em que outra realidade é possível. Estamos fracos e sedentos, não foi o dinheiro que fez isso, foi a ausência de oportunidades mais criativas que a necessidade primária dele bloqueou na gente. Reconheçamos na arte uma oportunidade de lutar por dias melhores, pra sair de condições limitantes. Essa mensagem é para os que caminham persistindo, é para os que questionam, fazem do ato de criar uma bandeira de luta contra o desgosto.

Arte é importante e tem que ser pra todxs sim!
Porque o preço é variável, mas o valor é inquestionável.

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Ps: Nada contra a linguagem do circo, pelamoooorde! Foi só pra trazer a expressão mesmo.

Ps 2: A matéria sobre o caso comentado no texto: https://veja.abril.com.br/politica/diretor-da-funarte-tentou-contratar-mulher-para-projeto-de-r-35-milhoes/

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INÁ
Performídia

Dançar com as palavras num formato que não interessa, o negócio é escrever sobre a arte que me afeta.