Voguing Como Zona de Escape

INÁ
Performídia
Published in
7 min readSep 16, 2019

Sobre reapropriação cultural como ferramenta de resiliência

Numa busca mais superficial, o Wikipédia descreve o Vogue ou voguing como uma dança moderna altamente estilizada que se caracteriza por posições típicas de modelos com movimentos corporais definidos por linhas e poses. OK, mas aqui a gente vai além. Pra entender melhor sobre essa linguagem da dança, que começou a nascer na década de 40 nas periferias de Nova York (a capital cultural dos Estados Unidos), mas especificamente nas prisões e tendo sido recentemente (mas nem tanto) muito bem recebida e localizada no Brasil, a Performídia vai colocar na pista os registros do Debut da Casa de Cosmos, uma casa de voguing recém nascida, composta por dançarinxs do estilo do Rio de Janeiro e que busca atuar em produção de pensamento, dança e performance. Além de expor as fotografias no Instagram, o portal ainda preparou esse vídeo com cara de matéria jornalística (com pesquisa em tags e tudo!), um texto no Medium e muitos links de referência na descrição.
Bora conhecer mais da Casa de Cosmos e dessa presença forte que é a dança voguing no Brasil?
Uma das referências mais citada para entender do universo do voguing é o filme-documentário Paris Is Burning dirigido por Jennie Livingston (disponível inteiro e com legenda no Youtube), outra talvez ainda mais conhecida é a música da Madonna com o mesmo título da revista que emplacou nas rádios e aproximou a cantora dxs dançarinxs para levá-los aos palcos junto dela e, ainda atualmente, a série de TV Pose com um elenco incrível e um roteiro bem informativo, além de bem sensível. Paris Is Burning bem como Pose são uma imersão no que se chama de Cultura Ballroom, onde a dança voguing está inserida. Em seu post de apresentação no Facebook, a Casa de Cosmos descreve Ballroom como um espaço orbitante, uma descrição breve e expansiva que já sugere a diversidade e a potência que a Cultura Ballroom, de modo geral, pode manifestar. Por isso, a primeira Ball (festa onde ocorrem as competições) organizada pela Casa tinha como título Zona de Escape.
Na noite de 1º de junho, no espaço Maria Tereza Vieira, Centrão do Rio de Janeiro, um aglomerado de pessoas se juntava para participar da celebração/competição/deleite. A competição, nesse caso, está para um confronto energético saudável. Ninguém está para ser derrotado e muito menos para derrotar ninguém! Pense em um jogo, um RPG, por exemplo. Existe uma narrativa geral, uma atmosfera comum (nesse caso, o conceito de zona de escape), a partir disso categorias que giram em torno da narrativa geral são criadas, estimulando a criatividade dos competidores. Na ocasião, eram 7 categorias com 7 temas, vou destacar a que achei a mais incrível: Cyberpunk Realness (primeira foto). Sério, foi uma noite emocionante!

expo completa no instagram!

A Cultural Ballroom é extremamente agregadora de saberes múltiplos, além de ser uma intensa experiência de trabalho do eu e de acolhimento coletivo. O voguing é uma dança criada por pessoas à margem da sociedade (isso na década de 80 e ainda hoje), pessoas que representavam valores que o “ideal americano” estava longe de querer ver e bem, estamos falando dos negros e pessoas LGBTQI+. Por aqui, pelo Brasil, a gente se identificou com a maneira de responder a rejeição do ideal criando um espaço de acolhimento que a galera do voguing de lá dos EUA começou a criar com esse movimento do voguing. Internet tem papel forte nisso, além da troca pessoal, é claro. Aqui a gente dança voguing com funk, chamamos House’s (como em inglês) de Casa ou até Ilé e o Chant (a marcação da música em tempo real com voz) a gente faz do nosso jeitinho, inserindo músicas em português. Até espetáculo de dança tendo como linguagem principal o voguing já rolou! Muitos grupos (as Houses ou Casas) estão se formando, esses grupos são coletivos que ensaiam juntos, promovem seus trabalhos, agitam espaços com atividades de capacitação e divertimento, além de funcionarem como grupo de apoio.
Agora uma pausa.

Só pra não deixar de tocar em polêmica, você já ouviu falar de apropriação cultural?

Pois bem, eu vou deixar umas referências no final do texto pra expor melhor o que é de uma forma um pouco mais explicadinha a apropriação cultural, mas a tentativa agora é entender esse assunto dentro da história da dança que estamos entendendo aqui. O voguing, como já mencionado, surgiu por volta da década de 40 nos presídios americanos e estourou na década de 80 nos guetos de Nova York. Livremente inspirado na revista Vogue, a começar pelo nome, a dança surge para que corpos periféricos, subjugados seja por condição de pele (negros, latino), condição sexual e/ou filosofia de vida, vivessem em performances uma realidade glamourosa, como aquela que era exposta nas páginas da revista. A revista chegava nos presídios e parecendo “inofensiva” servia de referência aos detentos, que copiavam as poses das modelos, subvertendo a imagem estampada. Periferia é, dentro das grandes capitais (ou seja, onde circula mais dinheiro), o lugar onde circula os excluídos, ou seja, os corpos que não se enquadram no ideal normativo de sociedade, esse que existe em todo lugar do mundo em diferentes intensidades, uma herança cristã ortodoxa; colonizadora, imponente e bastante segregadora.
E onde a apropriação cultural entra? Pois bem, a revista Vogue possui em seu histórico de existência (desde 1982 com publicações em 22 países) muitas páginas de apropriação cultural. Explico. O mercado da moda é desde sua origem bastante segregador, a revista Vogue contribuiu em muito para isso, buscando trazer elementos culturais como tendência sem os créditos principais das criações, fora de contexto e em corpos que não os representavam. Nas Ballroom’s (ou Balls), por mais que se buscasse representar o Glamour, acreditem, não era possível desfilar com uma jaqueta de marca famosa custando 42 mil dólares, não existia dinheiro para isso. Mesmo não sendo uma realidade possível, todes que faziam parte desse universo das Balls, criavam maneiras de ser e isso movimentava um território que, embora fragilizado pela falta de atenção, se tornava potente por fazer existir ali uma forma de resistência criativa, criando assim uma ferramenta de resiliência, pra viver o sonho mesmo estando bem acordado. Imagina como era a vida de uma mulher transsexual preta em uma periferia nos anos 70? E ó, periferia é periferia em qualquer lugar, inclusive nos EUA.
Com essa coisa toda, me surgiu uma questão sobre a polêmica: o voguing seria, então, uma apropriação cultural da tendência Vogue exposta nas páginas da revista?

Vejamos, então, os dois lados.

A revista que aponta tendências desde 1982 já estampou muitas de suas páginas com referência se quer creditadas, sendo elas de cabelo, estamparia, cores, adornos e etc, não gerando identificação em boa parte da sociedade, majoritariamente a parte excluída. Recentemente, lembrando, a Vogue Brasil promoveu uma festa com o tema “Candomblé” repleta de pessoas brancas ostentando o “estilo”. A festa foi extremamente criticada, e com razão, por pessoas negras brasileiras principalmente os praticantes da religião, que ainda sofrem com o racismo, que busca apagar a importância dessas vidas. Por outro lado, aqueles que não tem acesso a realidade luxuosa exposta na revista Vogue, expõem o desejo no corpo, vestindo o que querem e desfilando uma presença que se afirma, ainda que num meio comum por segurança, mas se afirma para dizer que dançar é PODER. Visto isso, apropriação cultural é quando quem já pode mais, utiliza do que os que podem menos produzem, para poder mais ainda e, o pior, não repartem! O voguing é um movimento de justiça social, reapropriação aqui está para ferramenta de luta.
Por aqui, nesse Por(Perfor)tal(Mídia) você ainda vai encontrar muita matéria sobre essa manifestação tão rica que é a Cultura Ballroom como movimento cultural, mas pra não encerrar o assunto porque ele é bom demais pra acabar, eu já deixo o recado que quando você receber um convite para algum evento chamado BALL, vá!!! Mas vá disposto a ser arrebatado, porque é isso que vai acontecer, eu prometo. Pra deixar você mais informadinho, segue uma chuva de referências pra aproximar ainda mais o assunto.

Se joga!

INSTAGRAM da galeria PERFORMÍDIA

https://www.instagram.com/performidia/

▼▼▼ ▼▼▼▼▼▼▼▼▼▼▼▼▼▼▼

Vogue e Empoderamento
https://www.youtube.com/watch?v=cniZbHUAlOA

Tribos Queer, Voguing Dança
https://youtu.be/Ln7lYYpl9Ho
O que é Vogue?
https://youtu.be/cB25K1v2I_MSobre o Vogue em Recife:
https://youtu.be/NtFLnzkADw8

Voguing na FOLHA:
https://youtu.be/kogeyScZ0G8

Voguing na Folha
https://youtu.be/kogeyScZ0G8

Voguing no concurso Dance seu PHd com a participação da galera de Recife
https://youtu.be/juP2YjZBn0c

e um textinho bem massa que encontrei aqui no Medium mesmo sobre o tema:
https://medium.com/@luciosouza/ballroom-glamour-orgulho-e-resist%C3%AAncia-f8d393e095cb

Sobre o tema da apropriação:

Mas onde é que um criador encontra a linha que separa a apreciação da apropriação?
https://www.vogue.pt/apropriacao-cultural

Lilian Pacce — apropriação cultural
https://www.youtube.com/watch?v=EhOhhgtx4EI

Essa Tal Apropriação Cultural — Muro Pequeno: https://www.youtube.com/watch?v=bFwJkIO-CwU

--

--

INÁ
Performídia

Dançar com as palavras num formato que não interessa, o negócio é escrever sobre a arte que me afeta.