A talha seco — J. Borges

Mateus Araújo
Pernambuco Vivo
Published in
3 min readJul 26, 2023
O xilogravurista J.Borges

Aquela pequena sala do burocrático prédio da reitoria da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife, nunca serviu como cenário para tantas fotografias como foi naquele dia da coletiva de imprensa convocada pelo professor e escritor Ariano Suassuna. Ainda mais quando o cheiro do livro recém-lançado por ele dava pano para as mangas aos jornais do País. Quatro repórteres corriam a caneta sobre o bloquinho de papel. Ariano desta vez não era o foco do encontro, só adjetivava sua descoberta: um ilustrador que nunca sequer havia escutado falar d’O Romance da Pedra do Reino, nem mesmo do escritor paraibano, virou notícia no Brasil. “O melhor gravador popular do Nordeste”, dizia Suassuna. J. Borges jamais esqueceu tudo aquilo — e jamais foi esquecido.

Xilogravurista e cordelista, o mais pop dos artistas Patrimônios Vivos
mora em Bezerros, numa boa casa às margens da BR 232, principal rota
que liga o Litoral ao Sertão de Pernambuco. J. Borges nasceu num sítio a 16 km do centro da cidade, em 1935. “Eu comecei a trabalhar aos 16 anos, na agricultura, com o meu pai. Aí fomos morar na Zona da Mata Sul, em Ribeirão e depois em Escada. Foi lá que comecei a trabalhar com cordel, fazer gravura”, diz José Francisco Borges, 78 anos.

“Chegava nas cidades, colocava o tripé com folhetos e abria a mala. Depois comprei um alto-falante. Quem tinha isso era chamado de ‘camelô rico’. Pobre declamava era no peito brabo. Às vezes, a polícia dava uma bronca, proibia o som. Era uma confusão. Eu vendia bastante”, relembra.

Em meados da década de 1970, Suassuna vivia um auto-exílio. Mas
resolveu abrir uma exceção. Precisava conhecer aquele homem que sabia traduzir tão bem a sua obra através da xilogravura. “Mandou me levarem até ele. Eu tive sorte.” A entrevista foi numa terça-feira. “No sábado da mesma semana, já começaram a chegar carros lá em casa e até hoje
eu não tive mais sossego na vida”, brinca J. Borges, que só estudou dez
meses e abandonou a escola ainda na infância, por determinação da avó,
que temia que o neto fosse atacado pelo papa-figo nas ruas de Bezerros.

Foi tudo muito rápido. Nem o próprio J. Borges se dava conta do
quanto sua vida ia mudando. Famoso, é talvez o Patrimônio Vivo que
mais sabe o valor comercial do seu trabalho. Calcula o preço de cada
peça feita na grande prensa que ocupa um espaço enorme de uma das
salas anexas ao seu ateliê. Já levou sua arte para a Europa, países da
América Latina e do Norte, ilustrou obras do uruguaio Eduardo Galeano, mas continua gravando as coisas de Pernambuco, “porque os turistas querem as coisas daqui”.

“A palavra do velho (Ariano Suassuna) é muito forte. Ele me chamou
de melhor gravador popular do Nordeste, na opinião dele. E o povo acreditou, rapaz. O povo é besta. Depois ele começou, nas andanças dele, dizendo que eu era o melhor do Brasil. Agora, que ele já não sabe mais o que diz, fala que sou o melhor do mundo”, brinca J. Borges, antes de confessar a razão de tudo isso: “Trabalho no meu traço, nunca mudei. E nunca saí de dentro da minha região”.

Este texto foi publicado pelo Jornal do Commercio, em 22 de outubro de 2013, como parte do caderno especial Pernambuco Vivo, com os perfis de artistas e grupos considerados Patrimônios Vivos do estado, título concedido pelo governo.

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Mateus Araújo
Pernambuco Vivo

Jornalista. Repórter do TAB UOL. Mestre em Artes pela Unesp e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro