Castigo que deu a razão de viver — Maria Amélia

Mateus Araújo
Pernambuco Vivo
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3 min readJul 29, 2023

Num final de tarde, véspera do dia de Santo Antônio, debruçada sobre uma mesa pequena, com as mãos engelhadas pelo tempo, Maria Amélia relembra, tocando o barro, da sua infância, de seus primeiros passos como ceramista. Atualmente, ela é a única mulher ceramista que tem o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. No seu rosto manso, os problemas de saúde deixaram marcas, sequelas de um acidente vascular cerebral (AVC). No seu corpo curvo, o derrame deixou dores diárias. Mas nada tirou de dentro dela a menina que continua redescobrindo no barro força e vitalidade.

Maria Amélia, hoje com 90 anos, começou a esculpir aos oito. Era uma brincadeira, um “castigo” do pai oleiro, que levava a filha para evitar qualquer traquinagem da menina e lhe entregou uma bacia com água, um paninho e barro. “Ele me mandou sentar e ficar fazendo uns bichinhos.” Era um pai amoroso, coruja, que achava lindas as lagartixas desengonçadas que a filha fazia para passar o tempo.

Nas idas semanais às feiras (sobretudo à de Carpina), nas quais a família vendia panelas, bacias e jarros, Amélia foi descobrir a inspiração para suas obras. Com sua delicadeza e simpatia, a artista reproduz imagens de anjos e santos com desenho naïf. São lindos e bem trabalhados, com traços de rostos simples e rechonchudos, embora imponentes. Santo Antônio, São José, Santa Luzia e São Jorge, os preferidos de Amélia.

Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2011, ela segue se recuperando do AVC sofrido em agosto de 2012. “Dói tudo. Agora está doendo até na mão. Às vezes nem posso trabalhar”, lamenta. “Eu não consigo ficar longe do barro. Mesmo quando estou com muita dor ou muito aperreada, chego aqui, pego a argila e me esqueço dos problemas. Ficar parada é muito ruim. É triste.”

No dia da entrevista, Maria Amélia dividia com o filho a tarefa de preparar novas peças para serem vendidas na Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte), que acontece anualmente em Olinda. Viúva, a artista tem apenas um filho, Ricardo, de 45 anos. “Eu quero deixar minha profissão para Ricardo. Ele trabalha, viu? Ele me ajuda. Faz peça, dá acabamento. Ele faz tudo certo. Meu pai deixou para mim, e eu vou deixar para ele. Queria que meu neto pegasse, mas ele é preguiçoso”, comenta, queixosa.

Diariamente, nos intervalos do trabalho — agora já mais raros –, Maria Amélia também faz fisioterapia. Uma das mais antigas ceramistas de Tracunhaém, ela orgulha a cidade, mas não abre mão de sua simplicidade e bom humor. Mesmo em meio à queda na venda de artesanato — crise que começou no fim da década de 1990 –, Amélia sempre se mostrou positiva. E continua. Se diz feliz, não se cansa de viver. E redescobre sempre a força no seu grande amor: a arte do barro.

Este texto foi publicado pelo Jornal do Commercio, em 22 de outubro de 2013, como parte do caderno especial Pernambuco Vivo, com os perfis de artistas e grupos considerados Patrimônios Vivos do estado, título concedido pelo governo.

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Mateus Araújo
Pernambuco Vivo

Jornalista. Repórter do TAB UOL. Mestre em Artes pela Unesp e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro