Entre raízes e armas — Zé do Carmo

Mateus Araújo
Pernambuco Vivo
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6 min readJul 28, 2023

Antigo Testamento, livro de Gênesis, 2,7: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente”. Zé do Carmo, que completa 80 anos em dezembro, é temente a Deus. Nunca quis ser Deus, mas passou a fazer do barro a imagem e semelhança do universo divino. Em Goiana, cidade da Zona da Mata Norte do Estado, o artista vive entre imagens sacras e lembranças barrocas. Sua mãe queria que ele fosse padre. O desejo materno, no entanto, perdeu para o preconceito. Diante da imagem de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, o padre renegou o menino de 12 anos. O seminário dificilmente aceitaria um padre negro. Restaria a sacristia, aceita como um amém. Mas entre as AveMarias, hóstias e novenas, o menino desafiava os dogmas com a inocência de quem não aceita que dois mais dois são quatro antes de ouvir uma boa explicação. “Por que numa igreja dedicada aos negros as imagens dos anjos e dos santos tinham rostos de gente europeia?”, indagava, recriminado pela mãe por heresia.

Aos 6 anos, José do Carmo Souza aprendeu em casa o ofício de artista. Sua mãe, Joana Izabel de Assunção, era lavadeira e uma das mais famosas ceramistas de Goiana. O pai, Manuel de Souza dos Santos, era padeiro e nas horas vagas fazia máscaras de papel machê para serem vendidas nas feiras livres. Dos primeiros contatos com o barro foram surgindo criaturas com feições humanas, que, com toques de imaginação de criança, anunciavam uma arte classificada depois de irreverente, desafiadora e nordestina.

“Quando eu era pequeno, costumava ir com os outros meninos caçar passarinho, derrubar com badoque. Minha mãe dizia que eu não fizesse aquilo. Por isso eu geralmente ficava só olhando os pássaros. Um dia, quando voltei pra casa, resolvi colocar asas em um dos bonecos que eu tinha feito. E ficou como um anjo. Minha mãe reclamou, disse que aquilo era errado.”

Era tudo muito complexo para a cabeça de uma criança. Havia um duelo entre o que pensava ser certo e errado. Enquanto andava por entre os bancos da igreja, sob as estátuas santas que compunham a decoração, Zé, menino, não conseguia associar as palavras de igualdade das pregações aos rostos que, a dois palmos dos seus olhos, destoavam dos termos proferidos na igreja. Não dava para entender que os anjos não tivessem as expressões nordestinas, caboclas. E por que harpas, e não sanfonas? Incompreensível também para sua mãe, que logo se opôs à arte do filho. Talvez ela também tivesse a mesma dúvida, mas preferia silenciar e aceitar com mais um amém tudo o que o padre, a Bíblia e o papa diziam: é assim e acabou-se. “Minha mãe me proibiu de fazer imagens.”

A região em que vive Zé do Carmo é uma das referências pernambucanas dos artistas santeiros. Como elenca o jornalista Jamildo Melo no livro Artesanato em Pernambuco, publicado pela Assembleia Legislativa do Estado em 2003, um dos nomes mais conhecidos de Goiana, na década de 1940, foi o mestre Doca, que formou vários artistas como seus discípulos, incluindo o próprio Zé e também seu irmão Antônio.

Por muito tempo, Zé do Carmo seguiu a fórmula comum a muitos dos artistas da cidade. Fez santos, anjos, animais e utensílios de barro com uma forma dogmática. Aos 9 anos, ganhou de um vereador goianense um forno para dar acabamento às peças. Mas dentro daquele menino que se dividia entre a arte e a fé havia uma provocação, um desejo de ir além, de criar e mudar.

Com a morte de sua mãe, o mestre passou a ditar suas próprias regras: pôde, de vez, fazer seu artesanato no modelo em que sempre quis. Mas foi na década de 1980 que o nome do ceramista virou, de fato, assunto nacional e até internacional. “(O então arcebispo de Olinda e Recife) Dom Helder Câmara me procurou e pediu para que eu fizesse umas peças para dar de presente ao papa João Paulo II, que estava vindo para Pernambuco”, lembra. Preparadas as peças, novamente a heresia — assim vista pela Igreja — assombrava a arte de Zé do Carmo. “Fiz um trio de arcanjos tocadores de pífanos e um anjo do cangaço, como um Lampião. Dom Helder mandou voltar o Lampião, avisou que não ia dar ao papa. ‘Como já se viu, um anjo cangaceiro?’, ele me disse.”

Era julho de 1980 quando João Paulo II veio a Pernambuco. Os anjos tocadores de pífanos, segundo a Cúria do Recife, foram entregues a Sua Santidade. O presente rejeitado por Dom Helder, o cangaceiro de asas de 1,5 m, é a única lembrança concreta que o artista tem da visita. A obra está na entrada do ateliê de Zé do Carmo, no Centro de Goiana. Sentado numa escrivaninha de madeira, imerso entre pilhas de pastas e papéis, cercado por miguéis, gabriéis e rafaéis que ocupam as prateleiras, o mestre é uma figura representativa da cidade. Sua casa recebe visitantes diariamente. O senhor mora com a esposa e o filho — ninguém divide o ofício com ele.

São dois espaços com esculturas entulhadas e um sonho de transformar tudo aquilo num museu. O artista, com o tempo, foi guardando peças da sua mãe e de seu irmão. Preserva também as suas próprias — hoje pura lembrança do trabalho que fazia no passado: “Passei muita fome vivendo de arte”. Há décadas, Zé trocou a cerâmica pela pintura — após viagens para exposições no Sudeste e no exterior, e de fugas para tentar uma vida melhor na utópica São Paulo dos retirantes, de onde voltou em 1972. Rendeu-se às telas e às frases de efeito. Um dos seus xodós mais recentes é o Zumbi anjo — o Moisés do quilombo: a figura heroica negra dos Palmares que representa a liberdade de povos. “Mostrei ao padre e ele reclamou. Disse que não tem nada a ver comparar Zumbi com Moisés. Eu disse que tem sim: do mesmo jeito que Moisés libertou o povo do Egito, Zumbi libertou os escravos das senzalas”, explica, em tom ao mesmo tempo cético e crente, o homem que sobrevive dos quadros e da bolsa vitalícia que o governo do Estado lhe paga mensalmente.

Sua história é contada em uma conversa circular. Ele vai levando o interlocutor de quadro em quadro. Junto de uma pintura, uma fotografia. Gilberto Freyre, aqui, é louvado como “o doutor Gilberto”, o “padrinho” do Vovô Vitalino — que é um Papai Noel caboclo que desfila pelas ruas locais no final do ano.

Entre Pai-Nossos e Ave-Marias, Zé do Carmo vai seguindo sua arte, contrariando a muitos com sua fé. A discordância lhe dá fôlego. Enquanto continua a se ajoelhar e comungar todos os domingos, sob a companhia das imagens da Igreja do Rosário dos Pretos, segue firme no seu jeito nordestino de ver o divino. Sobre os dogmas, é pedra: “Eu gosto de provocação”.

Este texto foi publicado pelo Jornal do Commercio, em 22 de outubro de 2013, como parte do caderno especial Pernambuco Vivo, com os perfis de artistas e grupos considerados Patrimônios Vivos do estado, título concedido pelo governo.

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Mateus Araújo
Pernambuco Vivo

Jornalista. Repórter do TAB UOL. Mestre em Artes pela Unesp e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro