Pelejas de mundo fantástico — Mestre Dila

Mateus Araújo
Pernambuco Vivo
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6 min readJul 26, 2023
O xilogravurista Dila
Foto: Ricardo Labastier/JC Imagem

Lampião é moreno, chocho e tem olhos azuis. Em Caruaru, no Agreste de Pernambuco, vive escondido em uma casa pequena, com dois quartos apertados e uma sala minúscula, longe de luxos, pratarias, ouros e couros. As paredes frágeis guardam o cangaceiro de traços fortes e pele amadeirada em tons de verde, preto e azul. Lampião está vivo com esses traços e cores dentro da memória e da obra de José Soares da Silva, Mestre Dila. O xilogravurista e cordelista, que nasceu em 23 de setembro de 1937 (embora durante a entrevista ele diga ter nascido em 12 de agosto do mesmo ano) no vilarejo Pirauá, no município de Macaparana, Zona da Mata Norte do Estado, veio ao mundo dez meses antes de Lampião desaparecer (ou morrer assassinado pelas volantes, como narra a história).

Na sua memória de infância, entretanto, ainda sobrevivem não só o senhor do cangaço, como detalhes de sua fisionomia e seus feitos. Há 60 anos, Dila descobriu os versos da poesia popular e os desenhos entalhados na madeira com o pai caricaturista, Domingos Soares da Silva, num sítio na cidade natal. A ligação com cangaceiros também seria herança paterna: “Meu pai e alguns dos meus irmãos eram do cangaço. Conheciam Lampião. Eu vi Lampião”. Dila teve 11 irmãos.

Na casa em que mora no Centro de Caruaru — cidade para a qual se mudou desde 1952 –, Mestre Dila empilha as marcas de Virgulino em uma estante de cinco prateleiras, no canto da sala, perto da porta de entrada. Nas matrizes de madeira e borracha em que talha formas, rostos, animais e palavras, reconstrói com a imaginação as aventuras e as histórias de mitos nordestinos. “Eu gosto de escrever sobre Lampião. É o que vende mais. Sempre falei sobre o cangaço. Escrevia e vendia bem. Tinha pessoas da família dos cangaceiros que compravam de uma vez só uns 100 ou 200 folhetos para distribuir.”

É por detrás do Parque Luiz Gonzaga, principal polo das festas juninas de Caruaru, que fica a casa de Dila. Na fachada há uma placa com sua foto. A casa de dois quartos, de sala e cozinha espremidas, é um destino de turistas. Eram mais numerosos quando se vendia cordel em dezenas. Hoje a pessoa compra no máximo dois ou três, ao preço de R$ 1 casa. A tradição ensaia desaparecer, mas o desejo de mantê-la viva não para de aflorar.

Os rostos sorridentes nos porta-retratos espalhados pela sala, sob a intercessão dos santos e santas enfileirados ao lado da televisão, já não têm nome. Dila, entre olhares baixos e risos de canto de boca, teima com a memória, mas fica nas reticências. Aos 76 anos, as únicas certezas que habitam sua cabeça são escritas em rimas. Nas mais de seis décadas como cordelista e xilogravurista, percorrendo as feiras livres de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Alagoas, a vida lhe rendeu bons causos. Nesse caminho, revelou-se sua fé em padre Cícero Romão e frei Damião, além do seu respeito por Lampião.

O poeta ainda se recupera de um acidente vascular cerebral (AVC), sofrido em junho de 2012. Depois de cinco dias internado no Hospital Regional do Agreste, em Caruaru, ele passou a viver sob cuidados da esposa, dona Valdeci, e dos seis filhos. Dila passou meses sem andar e falar. Agora vai aos poucos reaprendendo tudo, com calma e timidez. A mulher pede para que encare a câmara, mas o rosto continua curvado sob a mesinha em que trabalha diariamente, das 8h às 16h. Há muito o que se falar de Lampião, não há tempo para perder.

A vida que Dila leva como poeta popular é a mesma de muitos outros artistas. Para ele, pouco importa a origem dos folhetos no medievo europeu. A tradição chegou a esses homens do interior nordestino como expressão de uma cultura oralizada, rimada e ritmada, sob tom de humor e sarcasmo, que foi ganhando espaço nas feiras. Debaixo do sol, com varais de livretos, os cordelistas contam suas narrativas, provocam o público, recriam o épico e o mítico. No caso de mestre Dila, sua técnica foi cada vez mais aperfeiçoada.

Ele descobriu os artifícios da fabricação de carimbos e passou a usar a borracha na produção de seus trabalhos. Dila lançou um modo particular de imprimir seus cordéis (o que o pesquisador pernambucano Roberto Benjamin chama de “folk-off-set”): seja nas cores diversas que usa em uma só matriz ou nas combinações de várias formas separadas e depois unidas em um conjunto único. A partir dos anos 1970, ele inova e passa a imprimir folhetos coloridos.

Autor de cordéis como O sonho de um romeiro com o padre Cícero Romão e A bagagem do Nordeste, o poeta usa o dinheiro que recebe como Patrimônio Vivo de Pernambuco para ajudar a manter a casa e a comprar os remédios para hipertensão e diabetes. Ele torce para que o dinheiro não atrase. A família se vira como pode. Na sua casa, Dila mantém a editora Art Folheto São José. Além de imprimir os livretos populares, faz rótulos de bebida.

“Lampião morreu há dois anos, num interior de Minas Gerais”

Há sempre um segredo prestes a ser revelado pelo artista. O homem que no passado tagarelava, mas hoje vive de poucas palavras, é dono de uma doçura, mansidão e carinho emaranhados de mistério. A conversa é quase sempre uma visita às memórias. Esquecido pela plateia que o aplaudia nos anos 1970, o mestre já chegou a ser internado três vezes para tratamento psiquiátrico. A fantasia lhe rendeu, socialmente, o nome de louco. Mas seu talento se sobressai. Dentro do mestre poeta, um mundo se move, e a figura de Lampião retorna frequentemente: homem moreno, chocho e com olhos azuis.

O universo dos bandos armados que espalhavam o medo pelo Sertão nordestino no embrião da República (início do século passado), com relatos de saques a fazendas, ataques a comboios e sequestros, é tão bem desenhado aos olhos de Dila que arrebatam as grades do inconsciente dele para se erguer com veracidade nos ouvidos de quem escuta a fala do poeta. Os netos dele, seus sucessores, já não sabem falar de cangaço. Não sabem porque não entendem nada sobre o tema — é o mestre que diz. Na verdade, Dila parece estar tão a par do que narra, que agora conta uma história de um Nordeste muito seu. Um Nordeste que talvez só ele conheça. Uma história da qual ele é próprio dono.

Lampião — que para Mestre Dila é uma espécie de Dom Sebastião, o rei português desaparecido numa batalha contra os mouros e eternamente aguardado — talvez nunca tenha sido tão cultuado quanto dentro desta casa pequena e apertada. Sentado, encostado na parede, com o rosto que vez ou outra escapa do flash fotográfico, Dila olha a rua e suspira. Ensaia dizer algo. Os segredos e as histórias vão se movendo dentro dele com as reticências. Um silêncio de quem quer lembrar ou procura a fala: “Morreu há dois anos, num interior de Minas Gerais. Vivia escondido por lá. Muita gente se passava por ele, inclusive aquele que mataram em 1938”, diz, retomando a conversa. O rosto moreno, o corpo chocho, os olhos azuis de Virgulino Ferreira da Silva jamais vão sair das lembranças de Dila, que continua a vida talhando madeiras, contado histórias e criando seus próprios fatos: “Para realizar, eu não tenho mais nada”.

Este texto foi publicado pelo Jornal do Commercio, em 22 de outubro de 2013, como parte do caderno especial Pernambuco Vivo, com os perfis de artistas e grupos considerados Patrimônios Vivos do estado, título concedido pelo governo.

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Mateus Araújo
Pernambuco Vivo

Jornalista. Repórter do TAB UOL. Mestre em Artes pela Unesp e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro