UX Research-Ensaio de histórias de pessoas com deficiência (Autismo)

"A gente precisa de pessoas, não se vive sozinho"

Joyce Rocha
personas com deficiência
7 min readJun 28, 2020

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Mulher negra sorrindo, de tranças, com um óculos de grau preto.

Introdução

No meu primeiro artigo comentei a importância da empatia, acredito que um comportamento empático surge através de uma escuta sensível, de compreender as entrelinhas, de ouvir o não dito, observar num gesto e na respiração do usuário sensações e emoções que não é materializada em palavras. Os pequenos detalhes fazem toda a diferença no resultado final de uma pesquisa.

Hoje apresento o primeiro de muitos ensaios de escuta que eu tive com as pessoas com deficiência. O ensaio será apresentado como personas, mas diferente de muitas metodologias, essas personas com deficiência além de dados e informações terão vida! Terão voz e sentimentos.

Além de UX designer, sou das artes cênicas e usei o meu oficio como artista para experimentar em me colocar nas minhas palavras os sentimentos dos outros. Nunca vou de forma plena compreender o sentimento do outro, mas essa experimentação tem como objetivo de ver o meu usuário de uma maneira afetiva, sem expectativas e projeções.

Trabalho como UX designer (com foco em acessibilidade), tive o privilégio de entrevistar diversas pessoas com deficiência que trabalham com TI, além de compartilharem vivências no mercado de trabalho, consegui captar sensibilidades do cotidiano que me fez repensar o significado da pergunta: "Porque pensamos em acessibilidade?"

Muitas vezes pensamos em acessibilidade devido a perfis e dados apresentados por pesquisas quantitativas e algumas qualitativas, mas o quanto dessas informações técnicas estão de fato humanizadas?

Segundo os dados da ONU, temos aproximadamente 1 bilhão de pessoas com deficiência no mundo. O cientista Carl Sagan dizia que levaríamos em torno de 32 anos para contar esse número a partir de 0, seriam 32 anos contando sem parar dia e noite. 32 anos contando números de histórias, vivencias, sentimentos, e formas únicas de se ver e vivenciar o mundo.

Falamos diariamente de acessibilidade no olhar técnico, mas acredito que além dos dados e técnica, esse grupo precisa ser ouvido e visto com afeto, as pessoas com deficiência não são somente estatísticas, SÃO PESSOAS!

Tudo que será ouvido e lido a partir de agora são vivencias reais de autistas no universo tech e que também estão inseridos no mundo!

Ingrid — Desenvolvedora Front end com autismo

A primeira persona apresentada é a Ingrid, ela é autista , tem 29 anos, é desenvolvedora front end e não gosta de interfaces com muita informação.

Sua história foi copilada em áudio, e transcrita, espero que todos tenham uma boa vivencia com a história e a trajetória da Ingrid.

[Transcrição]

Meu nome é Ingrid, tenho 29 anos, sou formada em sistema da informação e trabalho hoje como front end. Eu sempre fui bem lógica para fazer tudo, ao mesmo tempo que eu era o bagunceira era a mina que passava em tudo. E dai no meu antigo trabalho tinha um cara que tinha autismo e TDAH, e eu cheguei a morar com ele, e ele falou, “meu, tu tem todas as características de… de autismo leve, vai no psiquiatra mano, pra ver o que é”. Ai eu fui no psiquiatra ele fez o teste lá, fez perguntas… "meu tu tem!". Dai eu peguei o diagnóstico, fui atrás, de fato, bate muito, tanto quando eu fui atrás de psicóloga especialista em atender quem tem autismo, começou a psicóloga valer a pena, porque todas que eu ia falavam coisas lógicas, e de forma lógicas eu já sei, eu quero aprender formas não lógicas, dai pegando a psicóloga em autismo começou a fazer sentido.

Então tipo assim, eu nem questiono sabe o diagnóstico do psiquiatra porque de fato, comecei a seguir a linha, e de fato começou ter resultado, eu senti o progresso. Assim que me vejo, que todo mundo me ver… é legal que quando eu tive o diagnóstico teve muita gente que me ajudou, na época e com ajuda deles eu conseguia aceitar o meu autismo.

E acho que a gente precisa de pessoas sabe? Não se vive sozinho, a gente precisa de pessoas que fazem bem pra gente também né? E quando a gente acha essas pessoas, a gente precisa valorizar elas.

[Transcrição]

Eu sou Front pleno né e o próximo patamar e virar uma desenvolvedora sênior, e a minha líder está me ajudando nisso, eu coloco tudo na plataforma de avaliação do colaborador que e acho divertido, eu adoro os gráficos sabe? Aqueles gráficos que tem de Feedback? Eles são interativos, e em baixo você pode conferir o Feedback, eu gosto muito do lance do tipo de ver o Feedback da equipe inteira, mas não tem o nome da pessoa? Ai você fica tipo, hum… Quem será que colocou esse Feedback aqui?

Isso é muito legal, e tipo ir lá naquele mural e ficar descendo pra ver o que as pessoas postam, de vez em quando sai uns negócios interessante de front.

Eu particularmente não gosto de Interfaces mais poluídas tipo, eles fizeram uma atualizada no Facebook para desktop, eu não consigo mais usar aquilo, é… eu acho muito desconfortável a quantidade de elementos apresentadas na tela, eu não sei se tem outras pessoas com essa opinião, mas já era desconfortável e eles foram lá e pioraram (risos), tipo, pô, pioraram o negócio não faz sentido, não tem cabimento né?

Eu não gosto de texto escrito em branco, se o texto não… se o texto não tiver quase branco tudo bem, mas… se tiver branco eu fico brava. O meet do google parece que o texto é branco, mas esse texto não é branco, ele é quase branco, mas não é branco, mas se ele for realmente branco é muito desconfortável. E eu também não gosto muito de quando eu vou usar uma interface nova e ela demora muito tempo para ser personalizada, tipo se eu não consegui personalizar ela isso me incomoda um pouco sabe? Por exemplo, eu acho a interface da nossa plataforma interna bastante confortável, porque eu gosto muita cor dela, sabe? É bem fácil, você vai lá coloca seus dados, coloca a foto, tac, tac, tac, pronto.

[Transcrição]

E acho importante sabe falar e pensar em acessibilidade, não só no mundo digital, mas em tudo, lembro de uma vez, eu tinha um grupo no WhatsApp muito grande, chamado o grupo do ônibus, quando eu tava na faculdade o pessoal fez um grupo de todo mundo que ia no mesmo ônibus pra eles ficarem meio que avisando se estava passando ou não, porque os horários desse ônibus eram completamente desregulado sabe? Então acontecia muita briga, um dia eu mandei uma mensagem só que ela demorou a chegar e ficou em fora de contexto, e ai uma pessoa achou que eu estivesse brigando com ele por algum motivo, porque tipo nem se a mensagem tivesse completamente fora de contexto fazia sentido, e ai a pessoa virou pra mim e perguntou num tom meio bravo quem você… quem é você? Por mensagem de texto eu olhei aquilo e perguntei: “ Ó uma pessoa querendo fazer amizade” e eu respondi o meu nome completo e curso.

O meu namorado depois olhou aquilo e falou, ele tá brigando com você, eu fiquei tão surpresa, mas é realmente sabe ele só mandou a frase assim e eu interpretei da forma mais literal, e eram pessoal que eu realmente não ligavam para nada, era um pessoal bem… Que bom que você perdeu o seu ônibus. Que bom que você perdeu o seu ônibus.

Se chegaram até aqui, observem os dados abaixo, com consciência que cada unidade desses números é uma história como o da Ingrid.

Autismo

O autismo é um Transtorno do neurodesenvolvimento que afeta a comunicação, interação e comportamento das pessoas.

1 em cada 54 crianças nascem com Autismo. Essa prevalência aumentou cerca de 86% entre 2010 e 2018. (As estatísticas do CDC americano em 1966 traziam uma prevalência de 1:2 em cada 500, esse ano a instituição chocou o mundo com o famoso 1 em cada 54, ocasionando muita polêmica e questionamentos).

• Ao redor do mundo, o autismo afeta 75 milhões de pessoas.

• No Brasil, os casos de autismo chegam a 2 milhões de pessoas.

• Os custos com autismo para a economia dos Estados Unidos gira em torno de 236 bilhões de dólares. (Isso é 1,5x maior do que os custos com tratamento de câncer que gira em torno de 157 bilhões de dólares).

• A expectativa de vida do autista é de 16 anos a menos do que uma pessoa neurotípica. (Infelizmente, essa realidade é influenciada por diversos fatores e tem o suicídio como uma das principais causas).

Acessibilidade digital

Em cima das falas da Ingrid, pontuei algumas recomendações de acessibilidade que pode ajudar a minha persona ter uma experiência melhor na web, tive como base o guia de acessibilidade chamado Projeto Gaia.

O GAIA é um guia de recomendações para desenvolvimento de sites mais acessíveis a pessoas com Autismo desenvolvida pela a UX Designer Talita Pagani. Seguem abaixo algumas recomendações:

Utilize uma linguagem visual e textual simples, evitando jargões, erros ortográficos, metáforas, abreviações e acrônimos, fazendo uso de termos, expressões, nomes e símbolos familiares ao contexto de seus usuários.

Permitir customizar cores, tamanho de texto e fontes utilizadas em elementos da página.

Oferecer opções para customizar a visualização de informação com imagens, som e texto de acordo com as preferências individuais da pessoa.

Oferecer opções para customizar a quantidade e a disposição de elementos na tela e personalizar as funcionalidades.

Projete interfaces simples, com poucos elementos e que contenha somente as funcionalidades e conteúdos necessários para a tarefa atual.

Gostaria da agradecer ao Caio Bogos e o Autismo Tech por me ajudar no processo de humanização desses dados.

Fontes:

Existem recursos, dados informações para darmos melhores condições para essas pessoas, só precisamos parar de contar, começar a ouvir e fazer.

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Joyce Rocha
personas com deficiência

UX designer, apaixonada por pesquisa em acessibilidade digital e experiência que podem mudar a vida das pessoas.