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Nausicaä do Vale do Vento: a compaixão irada como resistência

Luri
Pesadelos Criativos
8 min readJun 11, 2020

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Um filme sobre manter as convicções em meio às complicações.

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A jornada do herói é o template básico das histórias em Hollywood. Você vai ver as histórias serem contadas nesses moldes por todos os lados. De Star Wars a Senhor dos Anéis, de Harry Potter a Matrix.

Uma pessoa jovem sai de um contexto mundano, passa por aventuras e complicações diversas, mata seu inimigo com quem tem uma rixa pessoal e, no processo, sai transformado. Tudo, então, fica bem.

Mas no mundo real, matar todas as pessoas más não acaba com a maldade.

Nausicaä é um filme japonês, dirigido por Hayao Miyazaki. Mas mais do que isso. Nausicaä é uma aula sobre tempos conflituosos e como agir com empatia e compaixão no meio da confusão.

Nausicaä é um filme sobre resistência e sobre mudar o mundo, um filme com muito a nos ensinar sobre o nosso tempo.

Normalmente, vemos nos filmes, livros e séries, histórias que contam o processo de transformação de um personagem por meio da aventura.

Um herói ou heroína que tem uma crença falsa e sofre por ela, se depara com situações que o levam a rever o que pensa sobre si mesmo e sobre o mundo. Em geral, essas situações são provocadas por um vilão que personifica o grande mal que precisa ser combatido, a mentira que precisa ser refutada.

Mudar a crença é fundamental para que o herói possa ser bem sucedido em sua narrativa, é o que catalisa os eventos que o conduzem à vitória, pra que possa ter, enfim, uma vida mais feliz.

A morte ou derrota do vilão simboliza a vitória dessa transformação.

Pra não cair no clichê de falar de Star Wars e citar Luke Skywalker, vamos falar de Star Wars, mas utilizando como exemplo o personagem realmente mais interessante do filme: Han Solo.

Han começa o filme com uma postura egoísta, cínica. Não se importa com toda a feitiçaria e moral dos Jedi, não dá a mínima pra ladainha política dos rebeldes tentando mudar o regime. Ele só quer ganhar uma grana fazendo as coisas dele.

Porém, em um desses trabalhos, Han acaba participando involuntariamente do resgate da Princesa Leia e cria vínculos com Luke e a própria Leia. Ele mais tarde, por meio dessa conexão, percebe que pode valer a pena se arriscar por alguma coisa. Depois de quase nos decepcionar dizendo que não faz parte do movimento, nosso herói aparece na última hora e desfere o tiro que tira Darth Vader da jogada. Ele basicamente limpa o caminho pro Luke destruir a Estrela da Morte.

Na última cena, Han não é mais tão cínico. Ele sorri em meio a seus novos amigos e recebe uma medalha como o herói de uma de causa maior.

Fim.

Nausicaä do Vale do Vento não segue essa estrutura.

O filme se passa em um cenário pós-apocalíptico, onde a principal ameaça é uma floresta, conhecida como Mar da Destruição, que se expande expelindo esporos tóxicos e é habitada por insetos gigantes e ameaçadores, chamados Ohmu, que ficam furiosos e atacam quando ocorre algum ato de violência contra outros insetos dentro do Mar da Destruição.

No reino dos humanos há uma guerra em curso entre duas nações, Pejite e Torumekia, que têm como inimigo a floresta e os Ohmu.

Assim, temos um conflito multifacetado, onde cada uma das partes acredita que a solução é a aniquilação dos outros.

Nausicaä, como o título nos sugere, é a princesa do Vale do Vento, um pequeno país que está isolado dos conflitos maiores protagonizados pelas outras nações e até vivem em relativa harmonia com o Mar da Destruição e os Ohmu.

Nausicaä não compartilha da mesma visão e postura de truculência em relação aos Ohmu e à floresta que Torumekia e Pejite exibem, mas, ao invés disso, até os compreende. Ela os enxerga em seu próprio mundo, entende as dores típicas deles, suas razões e até criou formas de se comunicar e interagir com eles. Ela acredita que é possível haver um equilíbrio e uma convivência pacífica entre humanos e insetos.

O principal desafio de Nausicaä não é o de compreender algo que não sabe, mas sim, de permanecer firme em suas convicções em meio aos desafios que vão se apresentando.

Para ela, esses desafios se iniciam quando sua vila se vê no meio do conflito entre Torumekia e Pejite.

Primeiro, ela falha como pacifista, quando seu pai é morto e sua vila é feita prisioneira pelo exército de Torumekia. Ela ataca vários soldados enfurecida e só é parada por seu amigo e mentor, o espadachim Lorde Yupa, que tenta impedir o mal maior. Esse é seu ponto baixo, mas serve também como uma espécie de despertar, que a coloca de volta nos eixos.

Ela aceita, então, se fazer prisioneira pra proteger os moradores do Vale do Vento de retaliações.

Enquanto isso, Torumekia tenta reviver uma arma de destruição em massa no Vale do Vento, com o objetivo de destruir os Ohmu.

E Pejite, o outro reino em guerra, pretende acabar com seus inimigos torumekianos criando uma debandada de Ohmus utilizando um filhote machucado como isca, sem se importar que esse plano vai causar a destruição do Vale do Vento no processo.

Todos esses acontecimentos engatilhados não apenas ameaçam todos que ela ama, como também vão diametralmente contra os princípios de Nausicaä. É a barbárie, a violência levada ao extremo. É a completa falta de equilíbrio, de senso de interconectividade e respeito pela natureza.

Como é de se esperar, Nausicaä não pode ficar parada enquanto tudo isso acontece. Então, ela decide resgatar o filhote e devolvê-lo aos Ohmu, numa tentativa de acalmar sua fúria.

Pra isso, ela não mede consequências e vai se ferindo no caminho.

Porém, enquanto ela segue sua missão, Torumekia ataca e isso só piora o conflito.

Ao perceber que seus esforços foram em vão e que os Ohmu estão com muito ódio pra pararem, ela se coloca entre os Ohmu, o filhote e o seu povo, numa última tentativa de conter a manada.

Com seu sacrifício, os Ohmu percebem a fé de Nausicaä na crença de que a floresta e os insetos não são puramente maus e que a humanidade está, na verdade, confusa, fora de equilíbrio.

Os Ohmu, então, a envolvem em uma luz dourada e a trazem de volta à vida. Com isso, as pessoas percebem que os insetos não são monstros perigosos e que são capazes de atos de compaixão.

Um novo futuro de cooperação e harmonia, dos humanos consigo mesmos e dos humanos com os Ohmu se abre à frente.

* * *

Ao invés de começar de um ponto de vista de ingenuidade ou engano, Nausicaä inicia a história com fortes convicções: a de que a violência, a raiva e o ódio, não são caminhos. De que todos os seres são interconectados, humanos ou não-humanos. E que a natureza precisa ser cuidada e não destruída por medo, ignorância, ganância ou poder, por mais hostil que ela possa parecer.

Nausicaä não muda de visão no decorrer da história. E sua forma de encarar todos os conflitos é por meio da compaixão, que vai tomando formas diferentes.

Em diversos pontos da narrativa vemos isso sendo demonstrado de forma cada vez mais potente e com maiores consequências.

Inicialmente, vemos a pequena raposa-esquilo assustada ao se deparar com Nausicaä pela primeira vez. Ali, ela morde Nausicaä até causar um pequeno sangramento, que ela não evita, nem revida. Ela entende que o animalzinho precisa daquilo pra escoar a emoção. E a raposa-esquilo, então, aprende a confiar nela, vendo que ela não representa ameaça.

Kushana, a general dos Torumekianos, é a personificação da violência causada por medo. Ela, quando criança, teve seus membros amputados por um Ohmu e, por isso, carrega um grande desejo de vingança. Quando seus aviões caem no Mar da Destruição, Kushana tenta subjugar Nausicaä e ela consegue ver o que a motiva de imediato. Nausicaä não sente medo e, ao invés disso, empatiza mais uma vez: “Por que você está com medo? Parece uma raposa-esquilo assustada”. Aqui, como na primeira vez, a ação violenta passa direto por ela, que não se abala. Pela mera força da lucidez de Nausicaä, Kushana perde o ímpeto. Daí pra frente, ela está transformada.

Quando, em seguida, os Ohmu sentem as ameaças de humanos, tanto de Pejite quanto de Torumekia, Nausicaä mais uma vez tenta estabelecer comunicação, empatizando com as razões que movem os Ohmu e utilizando uma espécie de apito que os acalma.

É comum termos uma compreensão limitada da compaixão, como se ela fosse coisa de gente boazinha e não contivesse a energia necessária pra gerar transformações em conflitos complexos e violentos.

Assim, acabamos recorrendo a emoções como a raiva e o ódio, desumanizamos o inimigo e vamos nos perdendo. Mas a compaixão tem múltiplas facetas e pode ser bastante útil, principalmente em situações complicadas.

Nausicaa, quando age, não busca pela destruição de um inimigo. Ao invés disso, ela busca agir direto naquilo que causa o conflito. Ela entende que há medo e ignorância e, ao invés de tentar combater aos indivíduos, ela combate as causas e condições, tentando desmontar o tabuleiro que justifica aquelas atitudes, pois ela sabe que todas as peças estão interconectadas.

Nausicaä não procura culpados, não demonstra acreditar que todos são seres terríveis, monstros incorrigíveis e que merecem mesmo morrer. E muito menos, acredita que matar todos vai gerar algum bem. Mas isso não quer dizer que ela aceite passivamente que a confusão saia causando sofrimento. Nausicaä interfere, grita, se defende e às vezes até entra em batalha. Mas com outra motivação.

Mesmo seu sacrifício final é uma demonstração de compaixão irada. Ela utiliza até o último recurso pra não permitir que aquela catástrofe aconteça. Tenta corrigir a situação, sanar o conflito, mesmo que isso signifique seu próprio fim. É a última prova da sua convicção, da sua compaixão.

Nausicaa do Vale do Vento é um trabalho feito com amor e dá pra sentir na animação primorosa, na trilha sonora, em cada detalhe das naves, dos personagens, do ambiente. Foi tão importante nas vidas de Hayao Miyazaki, Isao Takahata e Toshio Suzuki que deu origem ao Studio Ghibli e, mesmo sendo anterior ao estúdio, é considerada uma obra canônica.

Isso é importante porque Nausicaä faz parte do catálogo do estúdio por ter fundamentado as principais características que permeiam tudo o que eles fazem. É uma obra política, fora do lugar comum e tem um pano de fundo mais notadamente ambientalista e pacifista.

Normalmente, temos um profundo ódio pelos nossos inimigos e é fácil compreender por quê. Vemos uma solução fácil que é pensar em acabar com eles, sumir, matar. Mas isso não resolve. As causas e condições seguem operando e infectando outros como uma doença. Quando percebemos, aquilo que criou aquela situação já infectou muitos outros, se espalhou. E o problema, de fato, segue.

Nausicaä é quase uma demonstração prática de ação compassiva irada, cortante, de tolerância zero. Ela não deixa a confusão seguir. E, nesse sentido, é uma obra que se mostra mais importante que nunca.

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