Filosofar, Repetir e Elaborar

Ricardo Gusmão
PET Filosofando
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3 min readJun 18, 2020

(…)Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, e a história não marcará, quem sabe? Nem um, nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? (…)— Álvaro de Campos (Tabacaria)

Para ser sincero, não sou adepto da crença na extraordinariedade humana, as características que entendemos como escultoras de um lugar especial para a nossa espécie não me parecem superiores às características que constituem o próprio lugar especial de cada coisa no mundo, e se todas as coisas possuem sua própria forma de ser especial não há superioridade alguma entre elas, ainda mais quando o conceito de “especial” ou “extraordinário” foi criado pela própria espécie que se coloca como tal, tendo como atributo suas próprias características e como único interlocutor a si próprio.

Sobre o idolatrado atributo que nos define, ou seja, a racionalidade, não vejo de outra forma senão a capacidade de construir uma narrativa que busque dar conta de explicar o que fazemos, mesmo que seja sempre um tipo de conto ficcional que busque colorir da forma mais agradável possível as nuances do instinto que vemos de forma crua no restante dos animais.

Somos contadores de histórias e isso se manifesta das mais variadas formas dentro da existência humana, tanto quando a humanidade se volta para si, como quando se volta para o que lhe é externo. E talvez, dentro de todas as atividades humanas, a filosofia, por não se prender a uma mesma narrativa constante, mas ser reformulada a cada filósofo(a) ou sistema, seja uma das quais nosso talento narrativo se torna mais visível e isso não é um mero capricho, pois exerce uma função social que é a de buscar constantemente construir uma história sem furos, e ainda que tal façanha seja impossível de ser concluída devido a natureza falha da linguagem, permite que lidemos melhor com os traumas, tanto enquanto sujeitos como enquanto sociedade.

Na clínica psicanalítica o sujeito conta sua história diversas vezes, e a história muda. Inicialmente a culpa dos problemas pode ser da criação dada pelos pais, depois podem ser outros fatores contingentes, nada disso importa. O importante é que nesse processo constante de elaborações na qual a mesma história é contada e recontada das mais variadas formas possíveis, atribuindo as mais variadas causas para o mesmo efeito, vai se tornando mais coerente, mais cuidadosa em sua composição e o mais importante, deixa de ser tão intragável ao sujeito que a narra, fazendo com que os demônios que o assombravam deixem de ser tão assustadores, ou pelo menos percam seu poder.

Em uma escala maior, temos elaborações sociais seguindo o mesmo padrão, como nos mostra um vídeo do canal Meteoro Brasil sobre os tradicionais filmes de monstros gigantes destruindo as cidades japonesas, dos quais Godzilla é o mais famoso. Uma forma de contar diversas vezes a história dos estragos deixados por um monstro real. Uma forma de lidar com um trauma que deixou sua marca em toda uma cultura, o trauma da bomba atômica.

Uma pandemia como esta que estamos vivendo também deixa seus traumas em diversos âmbitos, alguns bastante inesperados inclusive. E é papel do(a) filósofo(a) pensar sobre isso, elaborar o que a sociedade ainda não conseguiu, apontar os problemas, as possíveis soluções e ajudar o mundo a seguir, após tanto medo ter se instalado, tanta solidão, tantos dilemas éticos, etc…

Nesse sentido, podemos romper com a ideia de que o(a) filósofo(a) não faz nada, pelo contrário, pois se encontra em uma posição complicada na qual é esperado que ajude a elaborar em uma narrativa consistente, dentro das possibilidades da sua área, o grande emaranhado de caos que assola o seu tempo.

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Ricardo Gusmão
PET Filosofando

Bacharel em Filosofia, mestrando em Filosofia e Teoria Social pela UFBA