É uma cilada, Roger!

Resenha do filme “Uma Cilada para Roger Rabbit”, de Robert Zemeckis.

Felipe Rodrigues
PET História UFS
4 min readApr 4, 2019

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Assistir filmes exibidos na Sessão da Tarde durante os anos 90 era uma aventura. Com um público-alvo de diversas faixas etárias, em geral eram transmitidas produções family-friendly, para toda a família. Entretanto, por vezes fomos agraciados com longas-metragens, no mínimo, particulares: A Lagoa Azul (1980), O Rapto do Menino Dourado (1986), Elvira: A Rainha das Trevas (1988) e Ace Ventura: Um detetive diferente (1994) são exemplos de filmes que apresentam a diferentes idades uma percepção específica da história. Desta forma, um adulto consegue compreender temas, imagens ou mesmo diálogos que estão além do nível de inocência e pureza de uma criança — como piadas de duplo sentido ou um conteúdo político/religioso/sexual impróprio. Mas como lidar quando um filme utiliza animações populares entre os infantes como o Mickey e o Pernalonga, numa trama de corrupção, sexo e assassinato utilizando a estética sombria do cinema noir? Dúvida? Então, os convido a conhecer Roger Rabbit e a confusão em que ele se meteu.

Roger, Jessica e Bob na capa do filme “Uma cilada para Roger Rabbit” (1988)

Uma cilada para Roger Rabbit (Who framed Roger Rabbit, no original) é um filme estadunidense lançado em 1988. Ambientado na cidade de Los Angeles em 1947, o longa apresenta a história de Roger Rabbit, um desenho de sucesso acusado de matar o suposto amante da sua esposa. Ele recorre a um detetive particular para ajudá-lo a encontrar o verdadeiro assassino e assim, provar sua inocência. Após a primeira sequência, animada ao clássico estilo Tom e Jerry, é possível perceber qual é a grande inovação que o filme oferece: ser um live-action animado. Utilizando recursos que ainda eram uma novidade na época, foi possível que atores de carne e osso contracenassem com desenhos animados. Mas não quaisquer desenhos. Personagens da Disney e da Warner Bros. fazem participações como coadjuvantes ou mesmo figurantes no enredo. Apesar de não serem os protagonistas da trama, o fato de ter em uma mesma cena o Patolino e o Pato Donald interagindo com pianos de verdade representam o empenho do diretor Robert Zemeckis (de De Volta para o Futuro 1, 2 e 3, Forrest Gump e Náufrago), como também de toda a produção, para fazer algo único. Retratar a “Desenholândia” coexistindo com Hollywood é uma demonstração do sucesso das animações em meados do século XX.

Algumas das animações encontradas durante o longa-metragem

No time dos atores “de verdade” temos Bob Hoskins como o detetive Eddie Valiant, traumatizado pela morte do seu irmão nas mãos de um desenho animado, Joanna Cassidy na pele da sua companheira Dolores e Christopher Lloyd como Juiz Doom, principal antagonista da história. Existe mais um personagem que merece destaque: Jessica Rabbit, esposa de Roger. Apesar do seu marido ser um coelho, Jessica é uma bela showgirl que exala sexualidade, desenhada à imagem das grandes atrizes como Rita Hayworth e Lauren Bacall — as femme fatale originais. Dissimulada e sedutora, ela brinca com o juízo do telespectador. Ora uma adúltera, ora uma companheira dedicada, somente ao final do filme as suas intenções ficam explícitas.

Afora um enredo marcado pela comédia e pelo tom infantil, existe uma mensagem que percorre todo o longa. Algo que a criançada que assistia a Sessão da Tarde não percebia, pois estava muito envolvida pela alegria e o colorido das animações. De modo inteligente e sagaz, o filme é uma caricatura dos suspenses policiais das décadas de 40 e 50, repletos de indivíduos corruptos, homens amargurados e mulheres fatais.

Jane Greer e Robert Mitchum em “Fuga do Passado” (1947)

O cinema noir, conforme o crítico e historiador do cinema Philip Kemp, não é bem um gênero, mas sim uma sensação que a fotografia, a música e os personagens acrescentam à narrativa. Ambientados em cidades melancólicas, perigosas e solitárias, os longas abusam de flashbacks, narradores em primeira pessoa e do contraste entre luz e sombra para criar uma atmosfera paranoica e desesperadora. Esqueçam os mocinhos e as donzelas indefesas. Em um filme noir o protagonista é comumente um anti-herói, de moral dúbia e com um passado trágico. Ele acaba se envolvendo com uma personagem feminina de personalidade atraente, mas com objetivos ardilosos. Os dois, então, começam uma relação onde ambos desconfiam um do outro, desejando apenas alcançar seus próprios objetivos. Em Uma Cilada para Roger Rabbit Eddie Valiant e Jessica Rabbit são dois exímios exemplares dessa estética, quase retirados diretamente de um romance policial.

Lauren Bacall: uma típica femme fatale em ação

Diversos temas podem ser trabalhados a partir desta película. É possível falar sobre a Era de Ouro da Animação, o arquétipo da femme fatale, a modernização sem responsabilidade social e até mesmo o período da Prohibition — proibição do transporte e venda para consumo de bebidas alcoólicas nos EUA. Contudo, para aqueles que o viram na infância, Uma Cilada para Roger Rabbit permanece como um daqueles filmes nostálgicos, que traz saudade de um tempo mais simples e mostra que “Uma risada pode ser bastante poderosa, porque as vezes na vida é a única arma que nós temos” (RABBIT, Roger, 1988).

REFERÊNCIAS

KEMP, Philip. Tudo sobre Cinema. Tradução de Fabiano Morais… Et all. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 168–171.

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Felipe Rodrigues
PET História UFS

Baiano, geminiano e graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe. “A minha glória é esta: criar desumanidades!” (RÉGIO, José)