A última floresta: cosmogonia, cotidiano e a resistência yanomami

Maria Beatriz
PET História UFS
Published in
5 min readFeb 21, 2022
Capa do post de melhor filme no SEFF. Foto: reprodução.

A Última floresta é um filme brasileiro, de caráter documental, lançado em 2021, com a direção de Luíz Bolognesi e roteiro de Davi Kopenawa Yanomami. A narrativa da produção fílmica se constrói num misto de cosmogonia, cotidiano e resistência dos povos originários. Nesse sentido, buscaremos aqui compreender os objetivos centrais dessa produção que de forma revolucionária, se constrói de dentro para fora, isto é, da comunidade indígena para a sociedade não-indígena.

Os Yanomami estão em sua totalidade distribuídos no território brasileiro e na fronteira com a Venezuela, resultando em cerca de 30 mil pessoas, segundo o censo de 2008, realizado pela Fundação Nacional de Saúde. Os povos da floresta, como se autodenominam, possuem uma completude inigualável em todos os sentidos. No universo filosófico, poético, político e social. Na filosofia yanomami, a floresta, os animais e os povos, são harmônicos em sua existência. A relação dos povos originários com a natureza se mantém viva através dos ensinamentos orais, da tradição e da própria vivência dentro da floresta. Essa continuidade que atravessa os séculos, é diametralmente oposta ao mundo europeu, que com o nascimento das ideias de progresso, racionalidade e evolução, nas quais o homem se afasta da natureza para explorar e controlá-la, resulta na formação dessa “civilização potente” que desintegrou o átomo, construiu foguetes e bombas nucleares, mas que também continua arrastando a humanidade para uma crise hídrica, elétrica, epidemiológica e com uma vasta destruição ambiental. Desse modo, A última floresta nos apresenta, também, as consequências dessa exploração dos recursos naturais, os impactos da fumaça da doença (Xawara) e o feitiço da mercadoria. (BOLOGNESI in ITAU CULTURAL, 2021).

Davi Kopenawa Yanomami. Foto: reprodução.

Para o líder político, escritor e xamã, Davi Kopenawa (1956-), os yanomami enfrentam uma grande problemática, que é a tentativa de manutenção da floresta e da tradição, frente as invasões territoriais pelo garimpo ilegal. O “feitiço da mercadoria” é essa promessa de “vida melhor” com a saída do indígena da aldeia para trabalhar para os garimpeiros. Esse fenômeno gera a perda de identidade, uma vez que ao sair das comunidades, os indígenas se deparam com uma realidade violenta, com o trabalho explorador, a pobreza e a miséria. Sem contar com o fator interno, que em razão das limitações territoriais, os indígenas são cada vez mais encurralados e deslocados em massa para hectares cada vez menores. A antropóloga Alcida Ramos (1937), em uma de suas produções sobre as sociedades indígenas, afirmou: Extirpada de seu território, uma sociedade indígena tem poucas chances de sobreviver como grupo cultural autônomo (1986, p.20). Como consequência, podemos pensar, por exemplo, na taxa de suicídio entre indígenas, que é três vezes superior à média do país, segundo dados levantados pelo Ministério da Saúde.

Nesse sentido, além da luta para proteção do território, ainda há o enfrentamento contra a presença do garimpo, a proteção do seu próprio povo e consequentemente da tradição, e, por fim, a luta contra as epidemias trazidas pelos invasores, uma vez que os yanomami vivem isolados. Portanto, a produção documental ecoa não somente a força dessa comunidade, mas também nos convoca para voltarmos os nossos olhos, ouvidos, corpo e mente, enquanto não-indígenas, para à luta daqueles que estão no combate pela preservação do nosso ecossistema, da mãe-terra e da nossa existência enquanto seres humanos.

Cabe aqui, refletirmos também, sobre o título do filme. “A última floresta” remete a urgência de preservar o que ainda nos resta. Os yanomami ocupam os territórios com um vasto bioma, e com os avanços do desmatamento e a legislação que atende aos interesses do Agronegócio, o que nos restará, afinal? Sem os povos originários não há preservação das florestas, sem florestas não há vida, sem vida não há existência. O filósofo ambientalista e líder indígena Ailton Krenak, em uma de suas obras, intitulada “A vida não é útil”, publicada em 2020, discute uma importante noção para frear esse desenvolvimentismo desenfreado. “Temos que parar de nos desenvolver e nos envolver” (2020, p.24), porque afinal de contas, a lógica do capitalismo nos arrasta para a destruição, com a falsa ideia de que podemos reproduzir artificialmente tudo e, portanto, estamos alheios ao compromisso com a preservação ambiental.

Ailton Krenak. Foto: reprodução.

A cosmogonia yanomami revela uma crença bastante contundente em relação às doenças que assolam a humanidade. Nesse universo mitológico, os povos da floresta contam que o criador Omama, a fim de poupar seus filhos yanomami das doenças, enterrou a Xawara debaixo da terra. O que o garimpo faz é perfurar a terra e liberar a fumaça da doença, que se espalha pela terra, assim como o Agronegócio mata, polui e extingue a fauna e a flora. Na voz de Chico César (1964), a composição “Reis do Agronegócio” de Carlos Rennó (1956) evidencia essa e outras problemáticas que não são nada recentes na história do Brasil, vejamos um trecho que reflete a questão aqui tratada:

Vocês que enxotam o que luta por justiça / Vocês que oprimem quem produz e que preserva / Vocês que pilham / Assediam e cobiçam / A terra indígena o quilombo e a reserva.

A sabedoria dos povos originários está muito além do que uma produção fílmica possa apresentar, no entanto, o que Bolognesi e Kopenawa produziram foi a imersão num universo que tem beleza, força, conflito e denúncia. Urge a necessidade de ouvirmos as sociedades indígenas que estão a cerca de quatro mil anos nos mostrando que é possível preservar, cuidar e viver em harmonia com esse organismo vivo que é a Terra, e não é ela que depende de nós, somos nós que necessitamos dela. Por fim, concluo com o pensamento da antropóloga Aracy Lopes da Silva (1949), no qual ela aponta: “A questão indígena está longe de ser um ‘problema dos índios’. Ela diz respeito a todos nós” (1988, p. 37).

REFERÊNCIAS

CAMPELO, Lílian. Taxa de suicídios entre indígenas é três vezes superior à média do País. 2018. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/09/24/taxa-de-suicidios-entre-indigenas-e-tres-vezes-superior-a-media-do-pais. Acesso em: 19 jan. 2021.

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Futuro da Amazônia está em perigo, alerta o xamã Davi Kopenawa em Harvard. 2019. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589148-futuro-da-amazonia-esta-em-perigo-alerta-o-xama-davi-kopenawa-em-harvard. Acesso em: 19 jan. 2022.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Companhia das Letras, 2020.

RAMOS, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo: Editora Ática, 1986.

SILVA, Aracy Lopes da. Índios. São Paulo: Editora Ática, 1988.

REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS

A Última Floresta. Direção de Luiz Bolongnesi. Roteiro: Luiz Bolongnesi e Davi Kopenawa. S.I: Netflix, 2021. (74 min.), son., color. Disponível em: https://www.netflix.com/watch/81503933?source=35. Acesso em: 17 dez. 2022.

CÉSAR, Chico. Reis do Agronegócio. 2015. (11 min.), son., P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0mtvwidXP_4. Acesso em: 19 fev. 2022.

Conversa sobre “A última floresta”, com Luiz Bolognesi e Dário Kopenawa. S.I: Itaú Cultural, 2021. (78 min.), son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_4eF0wwkQAE. Acesso em: 17 jan. 2022.

Debate com Davi Kopenawa, Ailton Krenak e Sônia Guajajara. S.I: Instituto Socioambiental, 2021. (111 min.), son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=16YDWDufBpQ. Acesso em: 19 jan. 2022.

--

--