A morte para o homem ocidental

Will Santana
PET História UFS
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5 min readNov 5, 2018
Capa do livro. Foto: Reprodução.

Philippe Ariès, historiador medievalista francês, nascido no século XX na França, escreveu livros sobre aspectos da vida cotidiana. Seu maior destaque foi um estudo minucioso sobre a morte, rendendo obras como “O homem diante da morte, volumes I e II”. Ariès utilizou diários pessoais, textos literários, inscrições lapidares, obras de artes, túmulos, textos da igreja e a própria bíblia cristã como fontes. A obra resenhada, volume I, examina as transformações, quase imperceptíveis, que o homem passou perante a morte desde a Antiguidade tardia, século V, até o fim do antigo regime, século XVIII. Ao final, nota-se que, as transfigurações que mudaram completamente a relação do homem para com a morte foram atribuídas, em grande medida, à cultura cristã. O livro é dividido em duas grandes partes, a primeira, “Todos nós morremos”, descrito em 97 páginas, e a segunda, “A morte de si mesmo”, explanado em 211 páginas — ambas contagens já incluem as páginas das referências.

A morte domada, assunto da primeira divisão da obra, é a familiaridade do homem para com a morte. No imaginário da coletividade, a morte possuía seus próprios sinais naturais e o indivíduo tinha a convicção da hora da sua morte, nem o médico nem seus familiares lhe ocultavam a verdade. ““Rolando sente que a morte se apodera dele. Da cabeça desce para o coração.” Ele “sente que o seu tempo terminou”” (ARRIÈS, 1989, p. 7). Consciente da hora de sua partida, o moribundo inicia as práticas que lhe era de dever, os ritos mortuários. Dirigia-se à sua cama, deitava-se de costas e voltava sua cabeça para o oriente; reunia todos os seus familiares e amigos; admitia suas culpas para o divino e rendia-lhes homenagens; lamentava sua vida, seus bens e os seres que haveria de deixar; pedia perdão aos seus familiares, amigos e companheiros. Assim, a morte era uma um ato solene público. Morrer sozinho ou de morte súbita era feio e desonroso.

Apesar da naturalidade com que se tratava a morte, os antigos criam que dever-se-ia render homenagens e oferendas aos seus mortos, para que os mesmos não lhes sobreviessem a atormentá-los. Ambos viviam em espaços diferentes. Os cemitérios eram afastados das cidades pois, os mortos eram considerados impuros e dever-se-ia evitar contato. Esses ritos e crenças pagãs foram praticadas, de início, pelos cristãos. De início os cristãos mortos coabitavam o mesmo cemitério dos pagãos, depois em cemitérios vizinhos, em seguida dentro das cidades e por fim dentro da igreja e no seu entorno.

A penetração dos mortos para o interior dos muros, no coração das cidades, significa o abandono completo da antiga interdição e a sua substituição por uma atitude nova de indiferença ou familiaridade. Daí por diante os mortos deixaram completamente e por muito tempo, de fazer medo. (Arriès, 1989, p. 40–1).

Consequentemente, a igreja passou a ser: Uma grande necrópole; as comemorações e festividades religiosas eram realizadas lá; era o centro da vida social nas cidades; e, uma área pública de comércio, ponto de reunião dos cidadãos.

Dando sequência, a morte de si mesmo, conteúdo da segunda parte da obra resenhada, é o estudo das mudanças pormenorizadas de atitudes para com a morte, entre os séculos XII-XV, que foram responsáveis pelo tom dramático que foi dado à familiaridade que o homem tinha em relação a morte, ou seja, indivíduo passa a tomar consciência de si mesmo diante do traspasse. Essas mudanças podem ser vistas em várias condutas. Na particularização dos túmulos, se antes era comum que várias pessoas fossem sepultadas no mesmo local, como as valas coletivas do período das grandes pestes, agora, não mais. Enquanto antes cria-se que havia uma disputa entre o bem e o mau no momento da morte, agora, o indivíduo tem nas próprias mãos a oportunidade de salvar a si mesmo no momento de sua morte, aumentendo o risco de não ir para o céu. Deus passa de julgador para um misericordioso no momento da morte.

Surge a Arte Macabra e o homem passa a ver o que antes não via, a decomposição que o corpo atravessa debaixo da terra. O homem toma consciência do fato físico da morte e o apego a bens terrestres torna-se mais forte, consequentemente, não deseja separar-se delas, quer levá-las consigo. “A morte já não era apenas a conclusão do ser, mas uma separação do possuir: é preciso deixar casas, pomares e jardins” (ARIÈS, 1989, p. 147–8).

Os túmulos, agora individuais, passam a ter uma biografia pessoal. Aqui, vemos o retorno de uma cultura, praticada pelos antigos, a biografia tumular fora esquecida quando da desvalorização da escrita, retornando somente agora, na baixa Idade Média. De início, a biografia pessoal era apenas para os grandes homens, cavaleiros, padres e a elite, depois, expandiu-se para artesãos, comerciantes até chegar à todas as classes sociais.

Na baixa Idade Média, as cerimônias estavam resumidas à absolvição, mas, como o indivíduo passou a ser o próprio responsável por sua salvação na hora exata da morte, o medo de ir para o inferno aumentou. Surge, então, o purgatório, um paliativo. Doravante, os vivos poderiam orar e interceder pelos seus mortos para que os mesmos pudessem alcançar a salvação e ir para o céu. Intensificam-se, assim, as missas para os mortos. “Vemos, assim, formarem […], um culto dos mortos original, limitado às abadias, às colegiadas e às redes de filiação que tinham formado: sociedade dentro da sociedade, com sensibilidade propria” (ARIÈS, 1989 p. 172). Assim, a família e amigos que outrora fazia parte de todo o processo fúnebre, agora, passam a ser coadjuvantes. O protagonismo neste instante era da igreja. “Desde o último suspiro, o morto não pertence nem aos seus pares ou companheiros, nem à família, mas Igreja” (ARIÈS, 1989 , p. 176).

Dessa maneira, vimos como pequenas transformações ao longo de séculos mudaram sobremaneira a morte para o homem. “[…] a morte deixou de ser balanço, liquidação de contas, julgamento, ou ainda sono, para se tornar carniça e podridão, não mais o fim da vida e o último suspiro, mas morte física, sofrimento e decomposição” (ARIÈS, 1989, p. 148).

A obra, publicada em 1989, segue uma lógica de argumentos e informações explicitando as atitudes responsáveis pelas mudanças dada a morte para o homem. A escrita não é pomposa, o que facilita o entendimento do leitor. Indico o livro para curiosos e estudantes de história que gostam do modo de vida das pessoas do Medieval. Ótimo livro para entender como a igreja tornou-se a instituição mais poderosa do Medieval.

Referência:

ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte / Philippe Ariès tradução de Luiza Ribeiro. — Rio de Janeiro: F. Alves, 1989 (Coleção Ciência Sociais)

Tradução de : L’homme devant la mort.

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Will Santana
PET História UFS

Estudante de Licenciatura em História pela Universidade Federal de Sergipe.