A REPRESSÃO AO CANGAÇO EM DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

Ingridy Neirely
PET História UFS
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11 min readJan 31, 2022
Corisco, Dadá e Manuel. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/aXXQUrggb6qcNSt49

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) narra a saga do vaqueiro Manuel e de sua esposa Rosa. O longa-metragem inicia-se com o Manuel assassinando o seu patrão, que negara o direito do vaqueiro ao gado que criava. Após isso, o casal, em fuga, busca refúgio em uma comunidade messiânica de Monte Santo, na Bahia, formada por seguidores do beato Sebastião, um movimento messiânico que preocupa os fazendeiros e a Igreja do local. Manuel acaba por tornar-se o braço armado do líder religioso e, apesar dos apelos contrários de Rosa, envereda pelo fanatismo religioso.

Poster do filme. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/cETUAQv5n7deqdVT6

Na sequência, Antônio das Mortes, um matador de aluguel contratado pelos poderes locais, ataca a comunidade e assassina todos os fiéis, exceto Manuel e Rosa. Assim, mais uma vez jogado no mundo pela ação violenta, o casal vaga pela caatinga até serem conduzidos ao encontro do cangaceiro Corisco, sobrevivente do massacre do bando de Lampião. Nesta última etapa da jornada, Manuel e Rosa juntam-se a Corisco e seu bando, que sabem que estão com os dias contados. O desfecho vem através das armas de Antônio das Mortes, que nos impacta com o duelo mítico com o último cangaceiro, Corisco. Na última sequência do filme, Manuel e Rosa correm pelo sertão e o mar invade a tela, selando a profecia repetida pelo beato e por Corisco ao longo de todo o filme: “o sertão vai virar mar”.

Glauber Rocha. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/cETUAQv5n7deqdVT6

O longa é de direção do escritor, cineasta e ator Glauber de Andrade Rocha, ou apenas Glauber Rocha, que nasceu em Vitória da Conquista, em 14 de março de 1939. Como cineasta, Glauber Rocha ganhou, em Cannes, o prêmio de direção em 1969 e se tornou um dos grandes nomes do Cinema Novo Brasileiro. Sendo a obra que amplia a crítica social de Glauber em relação à exploração de sertanejos e à pobreza no sertão nordestino, Deus e o Diabo na Terra do Sol ganhou vida sob os princípios da “estética da fome”, marcado pela violência simbólica de um cinema revolucionário, feito a partir da precariedade de condições materiais. Por fim, Glauber morreu em 1981, ainda jovem, aos 42 anos, deixando sua marca no cinema e na política do Brasil.

Manuel e Rosa. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/VGfZgjRvZxWafBoi7

Ainda na saga de Manuel e Rosa, encontramos elementos do cangaço, do sertão e do homem sertanejo. O longa se inicia com uma tomada panorâmica do sertão, como um local baseado na fé e na esperança da melhoria de vida, que forma homens como Manuel, seguidor do beato Sebastião, uma figura de caráter messiânico que proporciona visões idílicas. Sebastião, representando o messianismo na obra de Glauber Rocha, lidera um movimento marginal, contrariando dois grandes poderes da sociedade: a Igreja e o Estado.

Sebastião. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/muzQmjchwKAZCncZ8

Por outro lado, a figura da mulher, representada por Rosa, é uma alegoria para o ceticismo. Rosa vê a salvação de sua vida através do trabalho e reluta em continuar onde vive, insistindo na tentativa de esclarecer o marido sobre a real finalidade do movimento, que não trouxera modificação para a sua vida. A partir dessas tentativas de Rosa, Manoel interroga Sebastião acerca da legitimidade do movimento, entretanto, mais uma vez o vaqueiro é levado pelo dogmatismo do beato.

Sebastião e Manuel. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/JUA84n7RfEcYYotp6

Nesse momento, é apresentada ao espectador uma nova personagem: Antônio das Mortes, um jagunço conhecido por matar cangaceiros. Na igreja local, Antônio das Mortes fecha um acordo com o padre e um latifundiário para exterminar o movimento religioso comandado por Sebastião, que vinham prejudicando os interesses dos poderes da região, como os coronéis.

Corisco. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/Jdc4zQ3SsrdFNPMe8

Após os acontecimentos em Monte Santo, somos levados ao encontro de Corisco, que profere o mesmo discurso que Sebastião: o pobre não pode morrer de fome, a República e o governo são o mal da população nordestina e as armas que possui serve para defendê-los do descaso do poder público. No longa, Corisco é o último representante do movimento dos cangaceiros e, segundo o que ele relata, Lampião e Maria Bonita haviam sido mortos há três dias. Com isso, há a percepção de que o cangaço já se encontrava enfraquecido por não possuir em seu grupo seus principais representantes.

Corisco, Dadá e Manuel. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/aXXQUrggb6qcNSt49

Ao final do longa-metragem, somos apresentados ao confronto entre o cangaceiro e Antônio das Mortes, que o mata a partir da sua concepção de que estava ajudando aos pobres a sair daquela situação de horror com o cangaço. Dessa forma, compreendemos que, na obra de Glauber Rocha e segundo a fala do próprio Corisco, o homem na terra de Deus e do diabo só tem validade quando pega as armas para mudar o destino dos demais, sendo obrigado a conquistar a justiça através da força.

Corisco e Antônio das Mortes. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/tqtEzmKbje5BP8Qs6
Cinema Novo. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/DzyBQf3w8uLVncq1A

Após uma breve análise dos elementos presentes em Deus e o Diabo, resta-nos a questão: e o Cinema Novo? Bem, “foi em clima de otimismo e crença na transformação da sociedade que nasceu o cinema brasileiro moderno, do qual o Cinema Novo foi um exemplo maior” (CARVALHO, 2006, p. 289). “Os cinemanovistas (…) desejavam, acima de tudo, fazer filmes, ainda que fossem ‘ruins’ ou ‘mal feitos’, embora ‘estimulantes’, conforme opiniões da época” (ibidem, p. 290).

Inspirados pelo despojamento do neo-realismo italiano, pelas inovações da Nouvelle Vague francesa e, mais proximamente, pelo cinema independente brasileiro dos anos 1950, os cinemanovistas não queriam — nem poderiam — fazer filmes nos padrões do tradicional cinema narrativo de “qualidade”, americano em sua maioria, que o público brasileiro estava acostumado a ver. O cinema que pretendiam fazer deveria ser “novo” no conteúdo e na forma, pois seus novos temas exigiriam também um novo modo de filmar (ibidem).

Com funções dramáticas ou conscientizadoras na precariedade técnica, e até mesmo estética, o Cinema Novo foi “fruto de uma ‘vanguarda cultural que buscava responder a questões fundamentais para o cinema do Brasil daquele período: o que deveria dizer o cinema brasileiro; como fazê-lo sem equipamento, dinheiro e circuito de exibição” (ibidem). As respostas vieram em forma de filmes impregnadas do radicalismo e da violência característicos dos anos 1960, sendo a baixa qualidade técnica dos filmes e o envolvimento com a problemática realidade social de um país subdesenvolvido definidores dos “traços gerais do Cinema Novo, cujo surgimento está relacionado com um novo modo de viver a vida e o cinema, que poderia ser feito apenas com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, como prometia o célebre lema do movimento” (ibidem).

Com sua produção classificada em três grandes áreas temáticas ligadas à vida em um país ainda fortemente rural, a escravidão, o misticismo religioso e a violência predominantes na região Nordeste, os cinematovistas realizaram filmes nos quais também discutiram acontecimentos políticos ocorridos no Brasil, bem como a transformação dos grandes centros urbanos com a modernização do país (ibidem, p. 292).

Por fim, como outros segmentos artísticos, o Cinema Novo também foi surpreendido pelo golpe militar de 1964, que passou a inviabilizar o projeto original dos cinemanovistas de discutir o Brasil abertamente, enfatizando segmentos sociais sem direito a voz (ibidem, p. 297). Desse modo, “a produção do Cinema Novo ficou quase paralisada até o ano seguinte, quando, aos poucos, os cineastas começam a encontrar brechas para possíveis realizações mais ou menos provocadoras” (ibidem, p. 298). Os cinemanovistas foram obrigados a redefinir seus projetos para adaptar o movimento estética e tematicamente às circunstâncias impostas pelo regime militar e, “entre 1969 e 1974, o período mais crítico da repressão política da ditadura militar, dispersaram-se, cada um tentando continuar a filmar” (ibidem, p. 307).

Após a devida apresentação do longa, do diretor e do Cinema Novo, nos debruçaremos agora sobre os elementos históricos presentes em Deus e o Diabo. Retomando aspectos históricos, como a Guerra de Canudos e o Cangaço, Deus e o Diabo na Terra do Sol reúne personagens reais e fictícios numa narrativa que tem o sertão nordestino como cenário. Coronelismo, misticismo e cangaço são elementos que dão a tônica da produção, que ao mesmo tempo assume um caráter documental e crítico da realidade brasileira da época e causa impacto ao usar beatos e cangaceiros historicamente presentes no Nordeste, figuras que se rebelaram contra a miséria e a exploração na região, como suporte para a discussão de problemas sociais contemporâneos.

Bando de Lampião. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/DzyBQf3w8uLVncq1A

Já sobre o cangaço, precisamos saber que, como a modalidade de banditismo emergente nos finais do século XIX, pode ser caracterizado, de acordo com Facó (1991), como um movimento social armado, contextualizado pelo coronelismo e a desigualdade social que afligiam a população do Nordeste brasileiro. Nesse movimento encontramos algumas categorizações de cangaceiro, a partir de Hobsbawm (1976), como aquele que entrou no cangaço por causa de uma vingança de sangue, aquele que pode se denominar como bandido puro ou simples e, por último, temos o que se enquadra no banditismo social.

Lampião com sua máquina de costura. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/bd6LP1taK9fHSNe88

Também se pode constatar que “o apogeu do cangaceirismo verifica-se aproximadamente do ano de 1914 […] até 1922 (quando os governos dos Estados do Nordeste concertam planos comuns de extermínio dos grupos volantes de bandoleiros)” (FACÓ, 1991, p. 179). Foi nesse período em que os cangaceiros ganharam maior projeção, precisamente por ser o momento de atuação do célebre Lampião.

Entretanto, foi também nesse período que os estados nordestinos empreenderam articulações a fim de combater a ação dos cangaceiros, em especial, de Lampião. Para isso, foi que, entre 1922 e 1935, foram elaboradas táticas e estratégias de combate ao chamado “Rei do Cangaço”, podendo-se classificar algumas delas como formas elementares de repressão ao banditismo utilizadas durante o período em que Lampião atuou como chefe.

Segundo Villela (1999), foi empregada a contratação de sertanejos para as tropas volantes que não pertenciam ao efetivo das Polícias Militares dos diversos Estados cujo território era frequentado por cangaceiros; criaram-se o maior número possível de destacamentos policiais que pudessem dar apoio logístico às forças volantes; foi estabelecida a repressão aos coiteiros, aqueles que protegiam o cangaceiros e forneciam víveres, armas, munições e informações; foram firmados acordos pluriestaduais que garantiam a permeabilidade das fronteiras estaduais para as forças volantes; foi resolvido que as populações de áreas não urbanizadas seriam transferidas em massa para vilas e aldeias, ocasionando no esvaziamento da caatinga; e, por fim, alguns governos resolveram desarmar o sertão para que não houvessem armas em circulação que pudessem acabar em mãos dos cangaceiros (VILLELA, 1999, p. 94–95).

Forças Volantes. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/ZU3f54Dy4PxP2MRE7

Dentre as formas de repressão ao cangaço explicitadas, merecem destaques os convênios interestaduais e o processo de abertura das fronteiras a fim de se combater os cangaceiros, através de um “conjunto de políticas e diretrizes governamentais, a soma de esforços humanos e de meios materiais, bem como uma série de ações militares empreendidas com a finalidade de prender e/ou eliminar Lampião e extinguir o cangaço” (CLEMENTE, 2014, p. 139). “Isso, inevitavelmente, causou embaraços à logística de Lampião. A consequência evidente dessas medidas foi a fuga dele e [de seu] reduzido bando para os sertões da Bahia, em 1928” (Ibidem, p. 169), e, posteriormente, para Sergipe.

Contudo, o empenho dos governos nordestinos diante da pressão do Governo da União e da própria modernização urbana e das forças de repressão, fez com que o bando de Lampião se visse cada vez mais empurrado para o sertão. Dessa forma, após décadas percorrendo os estados nordestinos e marcando a memória coletiva e histórica do país, o fim simbólico do cangaço se dá, justamente pela importância que Lampião tinha, com a morte dele, de Maria Bonita e de outros nove integrantes do grupo do emblemático “Rei do Cangaço”, em julho de 1938. Esses foram emboscados pelas forças policiais na Grota do Angico, localidade de Poço Redondo, no sertão de Sergipe. A ação esmagadora das volantes, possibilitada pelas articulações entre os estados nordestinos, levou à efetivação da repressão ao cangaço.

Cabeças do bando de Lampião em exibição em Piranhas/AL. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/ZU3f54Dy4PxP2MRE7

Nesse momento, podemos trazer aspectos mais particulares da repressão ao cangaço dentro do filme. Nele, temos o personagem de Corisco, segundo Mello (2011), Cristino Gomes da Silva Cleto, um cangaceiro do bando de Lampião, também conhecido como Diabo Louro, que entrou para o cangaço aos 17 anos, após matar um homem que era protegido do coronel da cidade de Água Branca. Porém, com a divisão do grupo de Lampião, Corisco tornou-se líder de um dos grupos, formando seu próprio bando de cangaceiros.

Corisco, o Diabo Louro. Foto: reprodução. Fonte: https://images.app.goo.gl/Nv3jCSyy3FiRzaxx5

Já em meados de 1938, quando Corisco recebeu a notícia do extermínio do bando de Lampião, resolveu se vingar furiosamente. Dirigiu-se até a Fazenda Patos, matou e degolou Domingos Ventura e mais seis pessoas da família do fazendeiro acusado de delatar o bando à polícia, cujas cabeças foram enviadas ao tenente João Bezerra (ibidem).

Por fim, Corisco e sua mulher, Dadá, que já haviam decidido deixar o cangaço, sofreram um ataque comandado pela volante do tenente Zé Rufino, figura que inspirou o personagem Antônio das Mortes. Dessa forma, com a morte Corisco, o cangaço nordestino enfraqueceu-se e acabou se extinguindo de vez.

Referências

CARVALHO, Maria do Socorro. Cinema Novo Brasileiro. IN: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006. p. 289–310.

CLEMENTE, Marcos Edilson de Araújo. Ordem e desordem: campanhas de repressão ao cangaço e as formas do poder republicano na década de 1920. Revista História & Perspectivas, Uberlândia, v. 26, n. 49, 8 mar. 2014, p. 135–174. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/article/view/24983/13846. Acesso em: 20 out 2021.

DEUS e o Diabo na Terra do Sol. Direção: Glauber Rocha. [S.l.]: Copacabana Filmes, 1964. DVD (125 min.). pb.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.

HOBSBAWN, Eric. Bandidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária, 1976. E-book.

FUZINELLI, P, BATISTA, R. O cangaço e o (ser)tão nacional: Deus e o diabo na terra do sol e a literatura de cordel. Uniletras, Ponta Grossa, v. 32, n. 1, p. 171–185, jan./jun. 2010. Disponível em: http://www.uel.br/eventos/sepech/sumarios/temas/o_cangaco_e_o_ser_tao_nacional_deus_e_o_diabo_na_terra_do_sol_e_a_literatura_de_cordel.pdf. Acesso em: 05 dez 2021.

MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil. 5. ed. São Paulo: A Girafa, 2011.

MONZANI, Josette M. A. Souza. Aspectos da Gênese de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Manuscrítica, 2006. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/manuscritica/article/download/177408/164445/445848. Acesso em: 05 dez 2021.

VILLELA, Jorge Luiz Mattar. Operação anti-cangaço: As táticas e estratégias de combate ao banditismo de Virgulino Ferreira, Lampião. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, n.25, p. 93–116, abril de 1999. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/23690/21276. Acesso em: 20 out 2021.

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Ingridy Neirely
PET História UFS

Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe. @indygnadaney