Amar na Idade Média: a trágica história de Heloísa e Abelardo

Camile Victória
PET História UFS
Published in
6 min readJan 24, 2022
(Pintura de Edmund Leighton, 1882. Foto: reprodução. Fonte: https://aventurasnahistoria.uol.com.br)

Ante a dicotomia de amor carnal e espiritual, Abelardo e Heloísa, prospector e aluna, viveram um romance volátil à época em que estavam inseridos, subordinados aos costumes da Idade Média em que se encarnava a dualidade frente à vida terrena e à vida espiritual.

Segundo o historiador Le Goff (2002, p,223) a cidade medieval era formada por uma “sociedade da abundância”, uma vez que o desenvolvimento comercial possibilitou relações sociais constituída por comerciantes, clero, mestres, soldados e prostitutas. Essa dicotomia cotidiana permitiu trocas de experiências, desenvolvimento da cultura e a propagação do conhecimento.

Uma das grandes características do período medieval é o ímpeto da Igreja que se impôs tanto fisicamente, através do esplendor de suas construções, quanto ideologicamente, para regrar e comandar a ordem social. É justamente nesse contexto de agitação, constante desenvolvimento, mundos e culturas que Heloísa e Abelardo são inseridos e subjugados a sofrerem as consequências da moralidade cristã.

Ambientada nessa perspectiva figura-se a jovem Heloísa, nascida em 1101 em uma família sem origens nobres. Com espetacular educação, possuía interesse por Filosofia e poesia, dedicou-se aos estudos da Lógica e da Física. Heloísa morava com seu tio, Fulberto, um cônego da Igreja, o qual foi responsável por sua educação e investindo nos estudos da jovem, buscou para ela sempre os melhores professores.

Já Pedro Abelardo nasceu em 1079, na cidade de Le Pallet, na França. Enquanto filósofo escolástico francês, teólogo e grande lógico, foi um dos mais aclamados professores de Paris. Era conhecido por admirar os filósofos não-cristãos, numa época em que as instituições do saber estavam diretamente ligadas a Igreja Católica, as universidades tinham características eclesiásticas, isto é, eram criadas pelos Papas e os professores pertenciam à Igreja. As soluções teóricas de Abelardo eram extremamente radicais a ponto de ser condenado em dois concílios por formular heresias. Provocando uma inovação na forma de ensinar, rompeu com as antigas metodologias platônicas e criou o que viria a ser um “embrião” do ensino universitário, completamente diferente das escolas existentes na época. O prospector usava a arte nas discussões e nos diálogos (dialética), o que atraía jovens de todas as partes.

Por volta dos 39 anos Abelardo conheceu Heloísa, mas antes de conhecê-la já tinha notícias de sua inteligência e dos seus conhecimentos literários e filosóficos. Para aproximar-se da jovem, Abelardo se apresentou a Fulberto e propôs tornar-se pensionista na casa do cônego. O eclesiástico aceitou, interessado em inserir a sobrinha nos estudos das belas-letras acabou por conceder-lhe a prospecção de Heloísa.

De acordo com os escritos de Abelardo, Heloísa era muito bonita e o fato de nutrir um amor pelo saber tornava-a uma mulher excepcional, uma jovem letrada, que já contava com uma bagagem intelectual antes de tornar-se sua aluna. A partir das aulas apaixonaram-se e juntos amavam a sabedoria e a veneravam.

As lições nos propiciavam esses tête-à-tête secretos que o amor anseia. Os livros permaneciam abertos, mas o amor mais do que nossa leitura era o objeto de nossos diálogos; trocávamos mais beijos do que proposições sábias. Minhas mãos voltavam com mais frequência a seus seios do que a nossos livros. O amor mais frequentemente se buscava nos olhos de um e outro do que a atenção os dirigia sobre os textos. (ABELARDO, 2000, p. 41 apud ALVES, 2012, p.15).

Diante dessa avassaladora paixão Heloísa acabou engravidando, tomado pelo medo das consequências que esse ato resultaria a ambos, Abelardo acabou enviando-a para a casa da sua irmã, na Bretanha, onde nasceu Astrolábio, fruto desse amor.

Buscando reparar a situação, Abelardo sugeriu a Fulberto, tutor de Heloísa, um casamento. No entanto, este deveria ser escondido, uma vez que o pensamento ético do século XII não via com bons olhos o casamento para filósofos e professores ligados a fé teológica, segundo este pensamento a mulher impedia o homem de dedicar-se à filosofia porque seria impossível servir ao mesmo tempo dois senhores: sua mulher e seus livros. A Igreja designou as mulheres ao papel de responsáveis pelo mal na terra, segundo Mary Del Priori (2020, p.18) “Pandora grega ou Eva judaica, a mulher cometera o pecado original ao abrir a caixa que continha todos os males ou ao comer o fruto proibido”.

Todavia, reafirmando um posicionamento de uma mulher crítica e decidida, Heloísa não consentiu a ideia, não via sentido alguma na ligação matrimonial, tinha a percepção que através do matrimônio não se poderia atingir o amor verdadeiro e desinteressado, afirmando que preferia que permanecessem unidos pela ternura e não pela aliança nupcial.

Jamais, Deus o sabe, eu procurei em ti algo além de ti; Não são os laços do casamento, nem um benefício qualquer que eu esperava, e não são nem minhas vontades, nem minhas volúpias, mas, e tu bem o sabes, as tuas, que eu fiz questão de satisfazer. Certamente, o nome de esposa parece mais sagrado e mais forte, porém sempre preferi o de amante, ou, se me perdoares por dizê-lo, o de concubina e de prostituta (HELOÍSA, 2000, p.95, apud, ALVES, 2012, p.42).

Contudo, não conseguindo dissuadir Abelardo, Heloísa acatou a decisão. Fulberto fez de tudo para divulgar a notícia do casamento, buscando limpar sua honra diante da sociedade, mas Heloísa negava o acontecido, tentando preservar a reputação do amado. Diante de tanta humilhação, Fulberto começou a castigá-la, mas não tardou para que Abelardo tomasse conhecimento dos maus tratos à Heloísa e mais uma vez acabou raptando-a e lavando-a para abadia em Argenteuil.

Frente aos acontecidos, Abelardo retomou para suas aulas em Paris, então Fulberto decide pôr em prática a vingança contra o homem que desonrou sua família, cortando “a parte do corpo com a qual ele havia pecado”. A vingança além de ser física tinha o objetivo moral, já que os textos do Antigo Testamento proferem que Deus rejeita os eunucos. Castrado, na miséria e na vergonha, restou a Abelardo ingressar na vida religiosa, fazendo também Heloísa proferir o voto monástico e se tornar freira.

O casal viveu separado pelo resto das suas vidas, não se reencontraram, mas o contato entre ambos foi restabelecido doze anos depois, após Heloísa tomar ciência que Abelardo escreveu “Historia Calamitatum”, contando a um amigo as destrezas do amor vivido ao lado dela. Foi a partir desse momento que Heloísa enviou sua primeira carta a Abelardo e então seguiu-se uma coletânea de troca epistolar entre os dois.

Ainda que passados muitos anos da separação, nas trocas de correspondências Heloísa não aceitava o golpe com que Deus os atingiu. No entanto, Abelardo tomou suas ações como erradas, aceitou o seu castigo e não estava preocupado com a impotência viril, mas com sua honra perante o criador. Heloísa questionava Deus e se afastava cada vez mais de todo e qualquer preceito cristão que outrora possuiu. Já para Abelardo, o que lhe aconteceu foi uma punição justa, enxergando as consequências com uma chance de remissão dos seus pecados e uma oportunidade para aproximar-se da vida em Cristo.

Com trajetórias diferentes, Heloísa demonstrou inconformidade, contestou toda situação e não aceitou os danos, solidificando a figura de uma mulher corajosa e determinada, que para além da virtude intelectual não se contentou com a imposição que a sociedade medieval atribui às mulheres, não teve medo de negar seus sentimentos e desejos, mesmo estando em uma situação vulnerável.

Ainda limitada pelo tempo à “amante de Abelardo”, é preciso reaver, a partir da História, a representação da mulher que nos permite enxergar o passado no presente, e que a partir das suas nuances solidifica a figura do feminino enquanto corajoso e determinado, que para além da virtude intelectual e mesmo à mercê de comportamentos coercitivos, ditados pela estrutura patriarcalista da época, rompeu com esse padrão.

Na coletânea das cartas trocadas entre eles, Abelardo apresentou um pavor quando descobriu que a abadessa do Paracleto continuava a ser a Heloísa que ele conheceu no mundo, por outro lado, ela não reconhecia mais o Abelardo imponente, que questionava tudo e que seguiu os filósofos não cristãos. Heloísa e Abelardo que vivendo e pensando de formas tão diferentes terminaram suas vidas julgando esse amor também de modo distinto.

Referências:

ALVES, Kelly Cristiane Mendes. Reflexões sobre o Humanismo Medieval a partir da correspondência de Abelardo e Heloísa. Amazonas: 2012.

BARREIROS, Isabela. O amor trágico de Pedro Abelardo e Heloísa de Argenteuil. Aventuras na História, 2020. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-pedro-abelardo-e-heloisa-de-argenteuil-amor.phtml. Acesso em: 19 jan. 2022.

Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000.

DEL PRIORE, Mary. Sobreviventes e guerreiras: uma breve história da mulher no Brasil de 1500 a 2000. São Paulo: Planeta, 2020.

MENDES, Ana Luiza. Entre a razão e o pecado: a linguagem do amor nas correspondências de Abelardo e Heloísa. Revista Vernáculo, v. 1, n. 24/24, 2009.

--

--

Camile Victória
PET História UFS

Graduanda em História pela UFS, ex-bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET História) e estagiária do Tribunal de Justiça no Memorial do Poder Judiciário