Clarice Lispector (1920–1977)

Inquietante, Fundamental e Eterna

Matheus Carvalho
PET História UFS
6 min readAug 10, 2020

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Chaya (Haia) Pinkhasovna Lispector, nasceu em 10 de dezembro de 1920, durante a viagem da família rumo a América. Filha de comerciantes judeus, Pinkouss e Mania Lispector, Chaya era a terceira filha do casal. Como judeus, os Lispector vivendo na Rússia pós-revolução decidem deixar o território soviético devido as constantes guerras e a violência do antissemitismo.

Figura 1: A família Lispector. Da esquerda para direita: Mania, Clarice e Pinkouss (sentados); Elisa e Tania (em pé). Recife, década de 1920. Reprodução. Fonte: https://claricelispectorims.com.br/vida/

Em março de 1922, chegam ao Brasil. São recebidos em Maceió (AL) por José Rabin e Zania, irmã de Mania. Nesse momento, os Lispector — com exceção de Tania, a segunda filha — assumem novos nomes, Pinkouss se torna Pedro; Mania, Marieta; Leia, Elisa; e Chaya, Clarice.

A família muda-se para Recife (PE) em 1925, onde Clarice estuda o currículo básico da época, além de hebraico e iídiche. Já em 1931, um ano após a morte de sua mãe, o pai de Clarice entra com um pedido de naturalização das filhas, sem sucesso — as meninas só viriam a ser naturalizadas na maioridade. É nesse ano que Clarice envia ao Diário Pernambucano diversos contos para publicação. Os escritos são recusados por falarem de sentimentos e não de fatos.

Dez anos depois, em 1935, os Lispector mudam-se novamente, o destino dessa vez era o Rio de Janeiro, onde Clarice se formaria em Direito pela Universidade do Brasil. É na capital do país que ela passa a desenvolver a maior parte de seus trabalhos, principalmente após a morte do pai em 1940.

A autora casa-se com Maury Gurgel Valente (1921-) logo após conseguir se naturalizar brasileira, em janeiro de 1943. Maury, que fez carreira como diplomata, viajou pela Europa e Estados Unidos com Clarice. O casal teve dois filhos, Pedro (1948-) e Paulo (1953-) Gurgel Valente, que viveram com a mãe após a separação do casal em 1959.

Figura 2: Clarice com os filhos e o casal Verissimo. Washington, 1955. Reprodução. Fonte: https://claricelispectorims.com.br/vida/

Após a publicação de seu primeiro romance Perto do Coração Selvagem (1943), passa a chamar atenção de críticos literários, já morando em Nápoles recebe a notícia que seu livro foi vencedor do prêmio Graça Aranha, como melhor romance de 1943. Saem nos jornais diversas críticas sobre sua obra, dentre as quais nem todas são positivas. Destaca-se a de Álvaro Lins (1912–1970), que irrita Clarice profundamente. A crítica publicada em 11 de fevereiro de 1944 no Jornal da Manhã qualifica a obra como uma “experiência incompleta”, além de apontar para influências britânicas de James Joyce e Virgínia Woolf, autores que ela diz nunca ter lido, admitindo que a influência do título de seu livro era sim de Joyce, mas através de seu amigo Lúcio Cardoso, que sugeriu o nome.

Clarice Lispector que nunca se considerou uma escritora profissional, como declara em sua entrevista ao programa panorama da TV Cultura, dizia que se considerar profissional colocaria sobre si uma obrigação de produção que não faria bem a sua obra, preferia dedicar-se profundamente pelo tempo que fosse necessário. Publicou ao longo de sua vida contos, crônicas, romances, traduções de artigos, livros infantis, notícias, entrevistas entre outros textos, dedicou-se a arte com tudo que tinha e é sem sombra de dúvidas um dos maiores nomes da literatura.

Suas obras receberam mais de 200 traduções, em mais de 10 idiomas. Destacam-se os romances Perto do coração selvagem (1943), A paixão segundo G.H. (1964), Laços de Família (1960) e A Hora da estrela (1977). Clarice costuma abordar a quebra de uma certa expectativa sentimental dos relacionamentos, cujas experiências, sempre doloridas, nos puxam para a realidade. Suas crônicas, normalmente publicadas nos jornais em que trabalhou, receberam compilações e estão disponíveis nos livros Para não esquecer (1978) e A descoberta do mundo (1984). Dentre elas, destaco a crônica publicada em 1962, que aborda a morte de um dos bandidos mais procurados do Rio de Janeiro, conhecido como Mineirinho, morto com 13 tiros. A autora descreve o espanto com a crueldade a qual José Miranda Rosa, o Mineirinho, fora acometido

“Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.” (LISPECTOR, 1962. Apud in PORTAL GELEDÉS, 2014)

Ao recordar desse texto, que diz ser um dos seus favoritos, declara “qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala bastava. O resto era vontade de matar. Era prepotência.” (1977, apud in HERINGER, 2013).

Em 1977, foi entrevistada pelo jornalista Júlio Lerner (1939–2007) no programa Panorama da TV Cultura. Clarice diz estar escrevendo uma história sobre uma moça alagoana. A moça alagoana é Macabéa, personagem mais famosa da autora, e a história é A Hora da Estrela (1977), obra mais traduzida e adaptada dela.

Clarice produz em A Hora da Estrela (1977) um retrato do Brasil, do sudeste forjado pelos braços de nordestinos que lá chegaram em busca de melhores condições de vida. Macabéa é essa personagem que de tão real, vive dentro de nós. Olímpico de Jesus, que carrega consigo um estereótipo do nordestino “cabra da peste”, é um sujeito de caráter completamente reprovável, furta colegas de trabalho e tem mania de grandeza. Assim como a alagoana, Olímpico encarna pessoas reais cujas ideias certamente vemos em nosso dia-a-dia, basta lê-lo e não faltarão sujeitos a nossa volta com uma personalidade parecida.

Além desse retrato, moldado pelo contexto social que a autora vivia naquele momento, há no texto um intimismo que faz com que a história de alguma forma reflita no leitor. É a maneira como Macabéa vê o mundo a sua volta, sem nunca se permitir, sem compreendê-lo, mas sem questioná-lo. Em seus sonhos e devaneios, a presença da tia que lhe batia, as superstições e principalmente um enquadramento moral, dominam a protagonista:

“Quando dormia quase que sonhava que a tia lhe batia na cabeça. Ou sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada. Quando acordava se sentia culpada sem saber o porquê, talvez porque o que é bom devia ser proibido. Culpada e contente. Por via das dúvidas se sentia de propósito culpada e rezava mecanicamente três ave-marias, amém, amém, amém. Rezava sem Deus, ela não sabia quem era Ele e portanto Ele não existia.” (LISPECTOR, 1998, p. 34)

Decidida a descobrir o destino de sua vida, a moça vai até uma cartomante e a revelação enche Macabéa de esperança. Casaria com um homem rico. O que acontece, por infortúnio do destino, põe fim a história, mas ali nas páginas finais, Clarice deixa o que talvez tenha sido seu sentimento com relação a experiência de viver “Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago” (LISPECTOR, 1998, p. 83). A vida é dolorida e não se escapa da realidade.

Figura 3: Clarice Lispector no parque de Great Falls, Washington, 1955. Reprodução. Fonte: https://acervos.ims.com.br/portals/#/detailpage/8589987530

O corpo de Clarice veio a óbito em 09 de dezembro de 1977, mesmo ano da publicação de A Hora da Estrela, em decorrência de um câncer. A data, um dia antes de seu aniversário, parece anunciar o fechamento de um ciclo, que apesar da dor e do desânimo com a vida — como aparenta na entrevista publicada ainda em dezembro daquele ano — pôde produzir a beleza do encontro com o outro, provocando em seus leitores as mais diversas sensações. Se algo pode ser dito sobre ela, me vem à mente dizer, sem sombra de dúvidas que Clarice é inquietante, fundamental e eterna.

REFERÊNCIAS

CLARICE LISPECTOR: A VIDA É UM SOCO NO ESTÔMAGO | Maria Homem. [S.I]: Casa do Saber, 2018. (10 min.), son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UQNtNas-qPg. Acesso em: 30 jul. 2020.

HERINGER, Victor. Quem foi Mineirinho: bastidores de uma crônica. Disponível em: https://claricelispectorims.com.br/ensaio/quem-foi-mineirinho-bastidores-de-uma-cronica/. Acesso em: 31 jul. 2020.

INSTITUTO MOREIRA SALLES. Clarice Lispector: a vida. Disponível em: https://claricelispectorims.com.br/vida/. Acesso em: 02 jul. 2020.

INSTITUTO MOREIRA SALLES. Clarice Lispector: livro a livro. Disponível em: https://claricelispectorims.com.br/livro-a-livro/. Acesso em: 31 jul. 2020.

LISPECTOR, Clarice. A hora de estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 87 p.

Panorama com Clarice Lispector. [S.I]: TV Cultura, 1977. (29 min.), son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU. Acesso em: 31 jul. 2020.

PORTAL GELEDÉS. Mineirinho: por Clarice Lispector. Por Clarice Lispector. 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/mineirinho-por-clarice-lispector/. Acesso em: 13 jul. 2020.

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