“E eu não sou uma mulher?”

Rebeca Leão
PET História UFS
Published in
5 min readJun 1, 2020
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/362047257543084167/. Acesso em: 19 maio 2020.

Sojourner Truth foi uma abolicionista e escritora afro-americana, conhecida por seu famoso discurso “E eu não sou uma mulher?” feito em Ohio, 1851, na Convenção dos Direitos da Mulher, que criticava a ausência da mulher negra no movimento sufragista, abordando com intersecção os direitos das pessoas negras e das mulheres. Além de uma grande pregadora, em 1864, Truth trabalhou na Associação Nacional de Assistência aos libertos e no ano seguinte, no Hospital dos Libertos, ambos em Washington.

Nascida em 1797, Swartekill, na cidade de Nova York, com o nome de Isabella Baumfree, Truth era filha de escravizados e nasceu em cativeiro. Em sua juventude, ainda marcada por essa condição, foi vendida diversas vezes. Em 1817, foi forçada a casar-se e teve 5 filhos, um deles era fruto de uma paixão que teve por um escravizado chamado Robert, mas ele pertencia a outro senhor, que não autorizou a relação dos dois por não poder ficar com o filho de Truth, já que ela era propriedade de outra pessoa.

No final de 1826, quando pertencia a John Dumont, Truth fugiu com sua filha mais nova Sophia, separando-se dos demais filhos pois eles não seriam legalmente libertos de acordo com a emancipação de Nova York, que elaborou leis para abolição da escravidão em 1799, mas este processo só entrou em vigor em 4 de julho de 1827. Até lá, Truth recebeu abrigo na casa da família Van Wagener, que comprou seus serviços à Dumont até que a alforria decretada pelo estado obtivesse efeito. Nesse período, Sojourner descobriu que seu filho Peter, de apenas 5 anos, foi vendido ilegalmente para um proprietário do Alabama e com a ajuda dos Van Wageners, recorre ao tribunal contra Dumont e ganha, recuperando seu filho e sendo a primeira mulher negra a mover um processo contra um homem branco e vencê-lo.

Nos anos seguintes, ainda como Isabella Baumfree, trabalhou como empregada doméstica, até que em 1843 mudou seu nome para Sojourner Truth e decidiu viajar, pregando sobre a abolição. Em maio de 1851, ela participou da Convenção dos Direitos da Mulher, em Ohio, onde fez seu famoso discurso “E eu não sou uma mulher?”. É importante ressaltar que no ano anterior, Sojourner Truth já tinha participado da mesma convenção, em Massachusetts.

O primeiro registro do seu discurso foi realizado por Marcus Robinson, em 21 de junho de 1851.

Bem, minha gente, quando existe tamanha algazarra é que alguma coisa deve estar fora da ordem. Penso que espremidos entre os negros do sul e as mulheres do norte, todos eles falando sobre direitos, os homens brancos, muito em breve, ficarão em apuros. Mas em torno de que é toda esta falação?

Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem — quando tinha o que comer — e também aguentei as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?

E daí eles falam sobre aquela coisa que tem na cabeça, como é mesmo que chamam? (Uma pessoa da plateia murmura: “intelecto”). É isto aí, meu bem. O que é que isto tem a ver com os direitos das mulheres ou os direitos dos negros? Se minha caneca não está cheia nem pela metade e se sua caneca está quase toda cheia, não seria mesquinho de sua parte não completar minha medida?

Então aquele homenzinho vestido de preto diz que as mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens porque Cristo não era mulher! Mas de onde é que vem seu Cristo? De onde foi que Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele.

Se a primeira mulher que Deus criou foi suficientemente forte para, sozinha, virar o mundo de cabeça para baixo, então todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr novamente o mundo de cabeça para cima! E agora elas estão pedindo para fazer isto. É melhor que os homens não se metam. Obrigada por me ouvir e agora a velha Sojourner não tem muito mais coisas para dizer.

TRUTH, 1851.

Este discurso não foi o único momento em que Sojourner Truth indagou o movimento sufragista, em um de seus escritos intitulado “On woman’ dress poem” (TRUTH, apud RIBEIRO, 2019, p. 22), Truth diz:

Quando vi mulheres no palco

Na Convenção Pelo Sufrágio Da Mulher,

No outro dia,

Eu pensei,

Que tipo de reformistas são vocês?

Com asas de ganso em vossas cabeças,

Como se estivessem indo voar,

E vestida de forma tão ridícula,

Falando de reforma e dos direitos das mulheres?

É melhor vocês mesmas reformarem a si

Mesmas em primeiro lugar.

Mas Sojourner é um velho corpo,

E em breve vai sair deste mundo

Em outra,

E vai dizer

Quando ela chegar lá,

Senhor, eu fiz o meu dever,

Eu disse toda a verdade

Ela não guardou nada.

Ao falar das asas de ganso na cabeça das sufragistas, Sojourner se referia ao chapéus usados pelas mulheres da alta classe. É muito mais nítido o apontamento ao racismo presente no sufrágio feminino nesse poema. Sobre o verso “É melhor vocês mesmas reformarem a si mesmas em primeiro lugar” ainda no livro “Lugar de fala” (2019, p. 23) Djamila Ribeiro comenta:

Essa estrofe aponta para uma possível cegueira dessas mulheres em relação às mulheres negras no que diz respeito à perpetuação do racismo e como naquele momento esse fato não era considerado relevante como pauta feminista por elas.

O movimento sufragista ocorreu entre o fim do século XIX e início do século XX, e surgiu com o intuito de lutar pelo direito feminino ao voto, pois naquele período as mulheres eram proibidas de participar da vida política. O sufrágio feminino também representou a primeira onda do feminismo, porém era uma luta bastante reduzida ao grupo específico de mulheres brancas da alta burguesia e até mesmo algumas de suas reivindicações já eram praticadas há muito tempo por mulheres pobres e mulheres negras, como o direito à trabalhar fora de casa.

Sojourner Truth é um exemplo de que mulheres negras intelectuais vêm produzindo e fazendo suas vozes serem ouvidas há muito tempo. Na segunda onda do feminismo surge o Feminismo Interseccional, uma vertente que para analisar e combater a desigualdade de gênero leva em consideração outras opressões como raça e classe social, por exemplo. Nesse mesmo período surge diversas intelectuais negras como Kimberlé Crenshaw, Bell Hooks, Audre Lorde, Angela Davis e outras grandes pensadoras.

REFERÊNCIAS

Sojourner Truth. 2009. Disponível em: https://www.geledes.org.br/sojourner-truth/. Acesso em: 19 maio 2020.

RIBEIRO, Djamila. Um pouco de História. In: RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala. São Paulo: Polén Livros, 2019. Cap. 1. p. 18–31.

PORFÍRIO, Francisco. Movimento sufragista. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/politica/sufragio-feminino.htm. Acesso em: 19 maio 2020.

MENA, Isabela. VERBETE DRAFT FEMINISMO NOS NEGÓCIOS: O QUE É FEMINISMO INTERSECCIONAL. 2018. Disponível em: https://www.projetodraft.com/verbete-draft-feminismo-nos-negocios-o-que-e-feminismo-interseccional/. Acesso em: 19 maio 2020.

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