História, poética e travestilidade na obra de Linn da Quebrada

Imagine o retrato de uma família. De uma infância. De dois amantes. De uma intelectual. De uma artista. Quantas travestis povoam o seu imaginário?

Romero Romulo
PET História UFS
5 min readFeb 14, 2022

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(Linn da Quebrada — Foto divulgação)

Na historiografia, as travestis quase nunca aparecem como sujeitas comuns. Quando surgem, no entanto, estão presas as narrativas da rua, da prostituição, do crime, da patologia. Historicamente corpos transviados, como Tibira do Maranhão e Xica Manicongo, estiveram destinados à violência e ao silenciamento. A história da colonização, assim, é a história de tensionamentos nos quais os corpos, sobretudo, indígenas e africanos, estiveram condenados as normas de um Estado instituído sob a moral cristã que não hesitava em inquiri-los. Ordenações religiosas, no século XVI, já previam a condenação, por crime de lesa-majestade, a esses.

O curso da história, nesse sentido, pouco se alterou, mesmo no século XX a perseguição e hostilidade permaneceu contínua. A exemplo da Operação Rondão que visava exterminar, durante a Ditadura Militar no Brasil (1964–1985), a população transexual das vias pública por meio da perseguição policial. No mesmo período, era comum a associação da transexualidade com a aids, estigma que não só contribuiu com a marginalização, mas também para a patologização de corpos trans. Se na colonização a moralidade cristã justificava a discriminação, aos poucos a própria ciência se ocupou de papel semelhante de modo que só no século XXI a transexualidade deixa de ser compreendida como transtorno mental. O corpo colonizador, portanto, nunca foi amorfo; ele sempre teve cor, classe, crença — e gênero.

Em uma sociedade que normatiza e legitima a cisgeneridade, a travestilidade se apresenta como contraponto. A existência travesti, identidade feminina latino-americana, põe em xeque as contradições e fragilidades do discurso normativo. O gênero não é uma condição natural de nenhum corpo, mas sim “a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (BUTLER, 2003).

“Ela tem cara de mulher, ela tem corpo de mulher
Ela tem jeito, tem bunda, tem peito e o pau de mulher!”

(blasFêmea | Mulher — Linn da Quebrada)

E é na natureza do que burla e do que brada que surge a artista multimídia Linn da Quebrada. A terrorista de gênero, como se define, por meio de suas memórias, reais e inventadas, contorna uma obra na qual o próprio corpo, e suas possibilidades, são o espaço de experimento artístico no qual aborda não só as temáticas TLGB+, como também as questões raciais que se cruzam. O jogo de palavras demarca a poética das composições, é pela língua — herança colonizadora — que Linn subverte, destituindo e reinventando signos. O uso constante de paronomásias desenha esteticamente os versos dos seus dois álbuns musicais, o Pajubá (2018) e o Trava-línguas (2021).

Com uma linguagem própria e sonoramente diversa, Linn constrói sua identidade artística na qual a travestilidade é uma investigação central. O rompimento das delimitações binárias e genitalizantes de gênero propõem uma reinvenção do imaginário social: “Dizem que não sou homem/ Nem tampouco mulher/ Então olha só, doutor/ Saca só que genial/ Sabe a minha identidade/ Nada a ver com xota e pau, viu?/ Bem que eu te avisei/ Vou mandar a real/ Sabe a minha identidade?/ Nada a ver com genital.” (Pirigoza — Linn da Quebrada).

Se o termo travesti é constantemente estigmatizado na associação ao imoral e ao proibido. Na obra da Linn, ele se realoca e politiza uma vez que ela surge não mais como objeto, mas como sujeita da sua própria história. Suas vivências vão contornando o processo de criação atravessado de desejos, de afetos, de fragilidades, de medos e de reinvindicações; não à toa somos convocados: “mate em você o macho, branco, senhor de engenho, colonizador, capataz que pensa estar sempre à frente, mas vive para trás” (mate & morra — Linn da Quebrada). Na ousadia de parafrasear Hilda Hilst (p. 209, 2018): os cínicos dirão que isso não é política, é poesia e ingenuidade, mas é assim para mim a verdadeira mulher política: poeta no seu sentido mais fundo, intenso e livre.

Em uma encruzilhada de ritmos, sonoramente ancestral e futura, a artivista Linn da Quebrada tem a palavra como matéria-prima essencial. A dúvida é o seu motor no transtorno e na transformação; quem soul eu? Norte do nosso tempo, Linn revisa narrativas e constrói poética e politicamente uma trajetória de resistência e de libertação.

(Linn da Quebrada — foto: Wallace Domingues/divulgação)

Posicionado entre os países que mais matam transexuais no mundo, segundo a ONG Transgender Europe (TGEU), o Brasil precisa ouvir histórias travestis. É através dessas, em suas repetições e particularidades, que podemos orientar um futuro. Como pontua Linn em sua canção: “Borrando suas fronteiras/ Nossas memórias, histórias/ Abalam suas velhas trincheiras.” (Nada será como Antes — Edi Rock, Linn da Quebrada e Ney Matogrosso). Imagine o retrato de uma família. De uma infância. De dois amantes. De uma intelectual. De uma artista. Quantas travestis ainda não povoam o seu imaginário?

“Eu determino que termine aqui e agora
Eu determino que termine em mim, mas não acabe comigo
Determino que termine em nós e desate
E que amanhã, que amanhã possa ser diferente pra elas
Que tenham outros problemas e encontrem novas soluções
E que eu possa viver nelas, através delas e em suas memórias.”

(Oração — Linn da Quebrada)

Referências

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

EDI ROCK. LINN DA QUEBRADA. NEY MATOGROSSO. Nada será como antes. São Paulo: Som Livre, 2021 (3min10s).

HILST, HILDA. 132 crônicas: cascos e carícias e outros escritos. Rio de Janeiro: 1 ed. Nova Fronteira, 2018.

LINN DA QUEBRADA. Mate & Morra. São Paulo: Estúdio Brocal, 2020 (3min37s).

LINN DA QUEBRADA. Pirigoza. São Paulo: Estúdio YB Music, 2017 (2min53).

Referência Audiovisual

QUEBRADA, Linn da. Linn da Quebrada — blasFêmea | Mulher. Youtube, 14 de abr. de 2017. Disponível em: <https://youtu.be/-50hUUG1Ppo>. Acesso em: 08 de fev de 2022.

QUEBRADA, Linn da. Linn da Quebrada — Oração (Clipe Oficial). Youtube, 2 de nov. de 2019. Disponível em: < https://youtu.be/y5rY2N1XuLI>. Acesso em: 08 de fev de 2022.

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