Um ensaio sobre a fofoca

Reflexão acerca do uso da injúria no jogo político a partir do livro O Diabo na Água Benta Ou a arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão¹, de Robert Darnton

Felipe Rodrigues
PET História UFS
5 min readOct 5, 2018

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Hyacinthe Rigaud — Retrato de Luis XIV (1701–1702). Fonte: Wikipedia

Em um dos seus aforismos, Oscar Wilde afirmou que “é monstruosa a forma como as pessoas criticam as outras pelas costas, dizendo coisas absoluta e completamente verídicas”². As mesquinharias do cotidiano detêm sobre nós um certo fascínio, especialmente aquelas que expõem os comportamentos considerados como desviantes e imorais. Assim, a arte de espalhar intrigas sobre uma briga entre vizinhos, um caso de adultério ou o vício de um conhecido se torna um pequeno prazer do dia-a-dia, um alívio para o tédio da alma. Independente da veracidade dos fatos, o conhecimento de detalhes indiscretos da vida privada serve para rebaixar o caráter alheio a um nível no qual o outro não se sinta mal pela sua própria mediocridade. Essa é a função social da fofoca.

Fonte: Companhia das Letras

A fim de obter resultados mais concretos que apenas tecer comentários maliciosos, difundiu-se na Europa do século XVIII um gênero literário cujo aspecto principal era a utilização de fofocas para difamar o governo vigente. Objetos de estudo do historiador Robert Darnton no livro O Diabo na Água Benta Ou a arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão, os chamados libelos consistiam em livretos repletos de notícias, anedotas e relatos sobre a vida dos nobres. Em suas páginas os autores anônimos procuravam expor as minúcias mais sórdidas envolvendo o rei, sua corte, o clero, entre outros personagens cujas informações interessassem aos leitores. Porém, o objetivo dos libelos ia muito além da calúnia, agindo como um instrumento de resposta ao governo autoritário e a censura quanto a liberdade de publicação. Para contextualizar: a França vivia um regime absolutista, cujos monarcas detinham o poder absoluto em todas as esferas político-administrativas, não dependendo de nenhum outro órgão parar exercer seu domínio. Esse regime iniciou-se no século XVII com Luís XIV, o ‘rei-Sol’, perdurando até o final do século XVIII quando foi interrompido pela Revolução Francesa. Ao passo que o Absolutismo era vantajoso para o Rei e seus associados, a maior parte da população da França era explorada, trabalhando para manter o alto padrão de vida da corte real enquanto penava para sobreviver. Os populares eram agredidos com altos impostos sem em troca obterem melhores condições de vida.

Neste cenário, o monarca absolutista também se preocupava em manter as aparências, demonstrando para o povo que ele era o legítimo governante. Para tal ele estabelecia rigorosas diretrizes para as publicações de livros e periódicos, pois esses não deveriam trazer nenhum tipo de informação que desgraciasse a figura do rei. Contudo, como reação a essa censura ocorreu o surgimento de toda uma literatura subversiva que falasse sobre assuntos proibidos e encontrasse brechas para difundir ideais modernos como o Iluminismo ou temas pungentes tais quais a sexualidade. No caso dos libelos, alguns eram impressos em outros países para fugir da repressão — na Inglaterra uma rua ficou conhecida como ‘gub street’, um local de forte agitação dos libelistas (autores dos libelos), inimigos do absolutismo francês.

Frontispício do libelo O gazeteiro encouraçado (Le Gazetier cuirassé). Fonte: Wodka

A linguagem dos libelos precisa de uma menção à parte. De modo que o conteúdo não fosse facilmente desvendado, o autor adotava técnicas de criptografia, desenvolvendo diferentes níveis de leitura. O primeiro libelo examinado por Darnton em sua obra, ‘O Gazeteiro Encouraçado’, tem no seu frontispício vários símbolos que fazem alusão a mitos e a pessoas. No entanto, era necessário um certo exercício cognitivo para fazer ligações entre as imagens e o que o autor realmente quis dizer. Ainda na folha de rosto desse primeiro livreto, seu autor comenta que o libelo é “uma miscelânea confusa sobre questões muito claras”. De certo, isso demonstra o tom irônico e gozador que esses escritos traziam, tornando-os a leitura ainda mais cativante.

Desta forma, a proposta dos libelos era desmistificar a representação idealizada que a monarquia criou para validar a sua governança através da injúria. Mostrar que o rei Luís XV era uma marionete da sua amante Madame du Barry, uma ex-prostituta própria a comportamentos imorais; de seus conselheiros, envolvidos em atos pouco edificantes como espionagem e assassinatos; passando ainda pelo clero, cujas orgias e outras façanhas sexuais não escaparam dos olhos e ouvidos do autor. A veracidade dessas informações nunca era comprovada, o que deixava quem lia ainda mais intrigado e ávido por novos detalhes. Ao expor toda a devassidão da corte os libelos excitavam os leitores, mas também explicitavam a injustiça social sofrida. A ação dos libelistas ajudou a inflar a indignação do povo, demonstrando que o rei não era virtuoso e não merecia governar. Pelo contrário, a vida depravada dos monarcas era a prova de que não existia legitimação na sua autoridade. A fofoca pelo bem do povo.

Trazendo a discussão para o presente, vemos que a injúria ainda é utilizada para fins políticos. As campanhas eleitorais fazem questão de destacar aspectos vexatórios da vida de um candidato, de modo a derruir a imagem que esse tem perante o eleitorado. Ao invés de atacar as propostas de campanha, o debate muitas vezes gira em torno de opiniões ou atitudes individuais — não que estas não valham a pena ser consideradas. Os libelos “reduziam as lutas de poder a um jogo ou choque de personalidades”³. Todavia, o contexto justificava a desmoralização da monarquia francesa, enquanto que as propagandas políticas apelam para uma simplificação chula do jogo de poder cujo intuito é ‘manobrar as massas’. O principal problema é reduzir toda argumentação à uma troca de ofensas pessoais que fazem o eleitor esquecer the big picture: a teia de relacionamentos e alianças que sustentam todo candidato. Logo, esquecemos do real e passamos a amar/odiar uma alegoria.

Em conclusão, a fofoca enquanto literatura não é uma invenção do século XVIII. Esta tradição remonta ao início da Idade Média com Procópio de Cesareia e a sua História Secreta, manuscrito fictício (ou não) sobre o imperador Justiniano, sua esposa e mais alguns indivíduos que não escaparam das críticas mordazes e da escrita quase pornográfica de Procópio. Em contraste com esse texto, os libelos estavam imbuídos de uma causa mais nobre: livrar a França da tirania absolutista. Passados alguns séculos esse ofício permanece ativo, mas destituído de qualquer virtude. Não existe mais diálogo. Existem fortalezas dispersas, nas quais cada grupo age como salvaguarda da verdade, quiçá únicos detentores da razão. Em vez de gerar uma consciência política, os ‘libelistas modernos’ brincam com a opinião popular, causando apenas mais raiva e desentendimento. Mas chega, agora eu vou falar umas verdades sobre a vizinha do 502.

¹DARNTON, Robert. O Diabo na água benta ou A arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 632 p.

²PERCY, Allen. Oscar Wilde para Inquietos. São Paulo: Editora Sextante, 2012.

³DARNTON, 2012, p. 18.

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Felipe Rodrigues
PET História UFS

Baiano, geminiano e graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe. “A minha glória é esta: criar desumanidades!” (RÉGIO, José)