Lampião do mangue: o cangaço na obra de Chico Science & Nação Zumbi

Ingridy Neirely
PET História UFS
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10 min readAug 31, 2020

O Manguebeat é um movimento, ou uma cena, como preferiam seus idealizadores, de contracultura que emergiu no Recife/PE, em 1991, visando modificar as imagens formadas sobre o Nordeste e problematizar a degradação ambiental, cultural e social dos manguezais. O movimento surgiu a partir da cooperação entre artistas que se dedicavam a transformar a realidade em que estavam inseridos fazendo críticas ao abandono econômico e social e à desigualdade que marcava a cidade do Recife ao misturar ritmos regionais, como o maracatu, com o rock, o hip-hop, o funk e a música eletrônica. Dessa forma, o Manguebeat formou uma cena cultural rica e diversificada, que impactou não somente a música, mas também outras formas de expressão cultural, como o cinema, a moda e as artes plásticas (UCELLA; LIMA, 2013).

É dessa situação de exclusão social, violência e fome das periferias que brota da lama dos manguezais um grupo de jovens inconformados com a realidade social e urbana da capital, Recife, que não se viam representados no cenário cultural local. Devido a isso, produzem o Manifesto do Movimento Manguebit, no qual apresentam uma alternativa para o marasmo cultural, arraigado no tradicionalismo, e trazem o senso de coletivismo, da necessidade de agir em conjunto para contestar o descaso sob o qual viviam (GUIMARÃES; CARVALHO, 2016). Dessa forma, o Manguebeat aproximou-se da arte do povo da periferia, conectando-se com problemas globais e revalorizando o capital cultural a partir de outros padrões estéticos, além dos instituídos pelas elites (GUIMARÃES; CARVALHO, 2016).

Chico Science & Nação Zumbi. Foto: reprodução. Fonte: https://i1.wp.com/cdn.diarioonline.com.br/img/Artigo-Destaque/570000/chico-science-nacao-censura_00571860_0_.jpg?xid=1233450

À frente dessa cena cultural estava Chico Science, com a banda Nação Zumbi, que ainda durante a década de 1990 lançou os álbuns Da lama ao caos (1994) e Afrociberdelia (1996), marcando o início desse movimento, nos quais se deu a realização da hibridização dos ritmos e, como consequência, da “modernização do passado”, além do compromisso de dar voz a uma identidade cultural suprimida (UCELLA; LIMA, 2013). Aos poucos, o que começou como um movimento musical foi envolvendo outras manifestações artísticas, como o cinema, a partir do filme Baile Perfumado (1996), dirigido por Paulo Caldas e Lírio Ferreira.

Chico Science. Foto: reprodução. Fonte: http://www.metodista.br//rronline/noticias/entretenimento/2013/02/chico-science-o-cientista-dos-ritmos/@@images/56359262-09da-461c-b5ae-541387840db8.jpeg

Mas, afinal, de onde saiu Chico Science & Nação Zumbi? Da lama, é claro! A banda foi formada em Recife no início dos anos 1990. Chico Science, ou Francisco de Assis França, veio à vida em Olinda, no dia 13 de março de 1966, foi cantor, compositor e um dos principais colaboradores do movimento dos mangueboys. Já havia feito parte das bandas Orla Orbe e Loustal, nas quais fez suas primeiras experimentações musicais sob influência do soul, do funk, do hip-hop e dos ritmos locais, como o maracatu — experimentações que viriam a ser a essência do Manguebeat — quando entrou na cena em que criaria sua obra-prima: com Jorge dü Peixe, Lucio Maia, Dengue, Gilmar Bola 8, Toca Ogam, Gira, Marquinho e Canhoto, Chico Science forma a banda Nação Zumbi, que em 1994 lançou Da Lama ao Caos, álbum de estreia que recebeu vários elogios da crítica especializada.

É precisamente sobre uma faixa do álbum supracitado que nos debruçaremos agora. Considerada uma das suas melhores — e mais críticas — canções, Banditismo por uma questão de classe faz alusão ao personagem quase mítico que pretendemos analisar: Virgulino Ferreira da Silva, ou apenas Lampião, o Rei do Cangaço.

Há um tempo atrás se falava em bandidos
Há um tempo atrás se falava em solução
Há um tempo atrás se falava em progresso
Há um tempo atrás que eu via televisão

Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda
Biu do olho verde é que fazia sexo, fazia
Fazia sexo com seu alicate

Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda
Biu do olho verde é que fazia sexo, fazia
Fazia sexo com seu alicate

Oi sobe morro, ladeira córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela
Acontece hoje e acontecia no sertão
Quando um bando de macaco perseguia Lampião
E o que ele falava muitos hoje ainda falam
“Eu carrego comigo coragem, dinheiro e bala!”
Em cada morro uma história diferente
Que a polícia mata gente inocente

E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fodido

Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda
Biu do olho verde é que fazia sexo, fazia
Fazia sexo com seu alicate

Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda
Biu do olho verde é que fazia sexo, fazia
Fazia sexo com seu alicate

Sobe morro, ladeira córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela
Acontece hoje e acontecia no sertão
Quando um bando de macaco perseguia Lampião
E o que ele falava muitos hoje ainda falam
“Eu carrego comigo coragem, dinheiro e bala!”
Em cada morro uma história diferente
Que a polícia mata gente inocente

E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fodido

Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade

Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade

Banditismo por uma questão de classe
Banditismo por uma questão de classe
Banditismo por uma questão de classe
Banditismo por uma questão de classe (CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI, 1994).

Lampião com sua máquina de costura. Foto: reprodução. Fonte: https://esquerdaonline.com.br/wp-content/uploads/2018/07/lampi%C3%A3o-3.jpg

Embora a canção tematize casos reais de banditismo que, de tão conhecidos no Recife, se tornaram lendas, como o Galeguinho do Coque, Biu do Olho Verde e a Perna Cabeluda, é com a figura histórica de Lampião que se compõe um discurso assumidamente politizado, que aponta as causas do banditismo, tanto das periferias do Recife quanto dos sertões nordestinos, como sendo uma das modalidades da violência que responde à exploração de classe e à indiferença do estado frente às desigualdades que regem a vida no Brasil.

Mas que tipo banditismo é esse do qual Lampião é símbolo? Podemos dizer, em linhas gerais, que o cangaço, sendo uma forma de banditismo social, é um dos fenômenos mais controversos da história nacional, geralmente categorizado na seguinte dualidade: ou composto de criminosos assassinos ou de heróis populares. Sendo um fenômeno social, político e cultural de boa parte da região Nordeste (exceto os estados do Piauí e do Maranhão), o cangaço é caracterizado como movimento social armado, contextualizado por disputas políticas e de terras, pela luta pela honra e pela inércia do governo brasileiro ante a miséria e a desigualdade social que afligiam a população desta região, além do isolamento e da falta de comunicação com outras regiões do país. Como causas para a eclosão do cangaceirismo, Rui Facó, em Cangaceiros e Fanáticos, aponta:

A situação dos pobres do campo no fim do século e mesmo em pleno século XX não se diferenciava daquela de 1856. Era mais do que natural, era legítimo, que esses homens sem terra, sem bens, sem direitos, sem garantias, buscassem uma “saída” nos grupos de cangaceiros, nas seitas dos “fanáticos”, em torno dos beatos e conselheiros, sonhando a conquista de uma vida melhor. E muitas vezes lutando por ela a seu modo, de armas nas mãos. Eram eles o fruto da decadência de um sistema econômico-social que procurava sobreviver a si mesmo. (FACÓ, 1963, p. 18)

Cabe, aqui, ressaltar que uma considerável parcela da população enxerga o movimento dos cangaceiros como puro banditismo, composto por assassinos que agiam com violência, destruíam cidades, cometiam estupros e não respeitavam as leis, ou seja, como interrogou Chico Science, se enquadrariam no “banditismo por pura maldade”.

Bando de Lampião. Foto: reprodução. Fonte: https://s2.glbimg.com/5lUxkXQRxrrIxc0RKfjVfaQUmvQ=/0x0:660x371/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_59edd422c0c84a879bd37670ae4f538a/internal_photos/bs/2019/Z/6/Bk0vmRR06On6bshGiqIA/lampiao.jpg

Para um melhor entendimento do porquê da eclosão de movimentos armados como o cangaço, é preciso observar que, durante a Primeira República, existiram diversos conflitos em áreas rurais do país, envolvendo questões como direitos sociais, controle de terras, distribuição de renda e disputa por poder. A maioria da população brasileira morava no campo e as desigualdades sociais e fundiárias contribuíram para a existência desses conflitos, assim como a realidade das periferias do Recife:

O cangaceiro e o fanático eram os pobres do campo que saíam de uma apatia generalizada para as lutas que começavam a adquirir caráter social, lutas, portanto, que deveriam decidir, mais cedo ou mais tarde, de seu próprio destino. Não era ainda uma luta diretamente pela terra, mas era uma luta em função da terra — uma luta contra o domínio do latifúndio semi-feudal. (FACÓ, 1963, p. 42)

Os cangaceiros ganharam maior projeção durante os anos 1920 e 1930, período de atuação do célebre Lampião. Porém, já na década anterior, o fenômeno aparecia nos jornais e era um dos assuntos mais falados nas cidades por onde haviam passado e arredores.

O apogeu do cangaceirismo verifica-se aproximadamente do ano de 1914 (depois de terminada a luta principal dos coronéis do Cariri por uma maior influência do Governo do Estado) até 1922 (quando os governos dos Estados do Nordeste concertam planos comuns de extermínio dos grupos volantes de bandoleiros). É nessa época que aparecem diversos grupos, atuando no Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagoas. Entre eles destaca-se o de Sebastião Pereira, no qual entraria em 1917 Virgulino Ferreira, o mais tarde famoso Lampião. Este, com seu bando independente, torna-se o mais cé­lebre cangaceiro de todo o Nordeste, que devassa de um extremo a outro, durante vinte anos, despertando admiração e horror. (FACÓ, 1963, p. 176)

Após décadas percorrendo os estados nordestinos e marcando a memória coletiva e histórica do país, o fim simbólico do cangaço se dá, justamente pela importância que Lampião tinha, com a morte dele, de Maria Bonita e de outros nove integrantes do grupo do emblemático Rei do Cangaço, em julho de 1938. Eles foram emboscados pelas forças policiais conhecidas como volantes na Grota de Angico, localizada em Poço Redondo, no sertão de Sergipe.

Outra faixa que trata do fenômeno do cangaço é Sangue de Bairro, presente no álbum onde há um evidente amadurecimento na mistura de ritmos regionais com ritmos da música pop internacional, Afrociberdelia, lançado em 1996.

Besouro, moderno, Ezequiel
Candeeiro, seca preta, labareda, azulão

Arvoredo, quina-quina, bananeira, sabonete
Catingueira, limoeiro, lamparina, mergulhão, corisco!

Volta Seca, Jararaca, cajarana, Viriato

Gitirana, Moita-Brava, Meia-Noite, Zambelê

Quando degolaram minha cabeça
Passei mais de dois minutos
Vendo o meu corpo tremendo

Quando degolaram minha cabeça
Passei mais de dois minutos
Vendo o meu corpo tremendo

E não sabia o que fazer
Morrer, viver, morrer, viver (CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI, 1996).

Poster do filme Baile Perfumado. Foto: reprodução. Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/pt/a/ac/Baile_Perfumado.jpg

Num ritmo alucinante, Sangue de Bairro narra uma das cruéis táticas de extermínio de cangaceiros: a degola. E é aqui que temos a junção de duas manifestações culturais do Manguebeat, música e cinema. Sangue de Bairro compõe a trilha sonora do filme Baile Perfumado (1996), sob direção conjunta de Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Considerado o marco da retomada do Cinema Pernambucano, Baile Perfumado conta a história real do libanês Benjamin Abrahão, responsável pelas únicas imagens de Lampião e seu bando, para as quais o mascate infiltrou-se no grupo para fazer filmagens do dia a dia dos cangaceiros, a fim de vender os registros dos famosos criminosos pelo mundo afora.

Por fim, um infeliz acidente de carro numa das vias que ligam Olinda a Recife, no dia 2 de fevereiro de 1997, causou o falecimento de Chico Science. Mas a história da Nação Zumbi não acaba aí, a mesma prosseguiu com Jorge Dü Peixe no vocal, dando voz ao legado do lendário mangueboy que tão bem cantou a figura quase mítica que vagou, aterrorizou e vingou os sertões nordestinos.

Referências Audiovisuais

BAILE PERFUMADO. Direção: Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Produção: Aniceto Ferreira e Beto Monteiro. Brasil: Rio Filme, 1997. 1 DVD (93 min).

Chico Science & Nação Zumbi. Banditismo por uma questão de classe. Disponível em: <https://youtu.be/YmXUQ1-6f9c>. Acesso em: 29 jul. 2020.

Chico Science & Nação Zumbi. Sangue de bairro. Disponível em: <https://youtu.be/TPSoY4SQMdE>. Acesso em: 29 jul. 2020.

Movimento Manguebeat. [S.I]: TV Cultura, 1994. (55 min.), son., color. Disponível em: <https://youtu.be/lVhifnpgd5Q>. Acesso em: 12 ago 2020.

Referências Bibliográficas

FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1963. E-book.

GUIMARÃES, Rodrigo Gameiro; CARVALHO, Cristina. O Movimento Manguebeat na mudança da realidade sociopolítica de Pernambuco. Políticas Culturais em Revista, Salvador, v. 9, n. 1, p. 110–133, jan./jun., 2016. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/pculturais/article/view/16800>. Acesso em: 29 jul. 2020.

UCELLA, Orlando Brandão; LIMA, Tânia. O Maracatu Afrociberdélico de Chico Science e Nação Zumbi. Revista Brasileira de Estudos da Canção. Natal, n.4, jul dez 2013. Disponível em: <http://www.rbec.ect.ufrn.br/data/_uploaded/artigo/N4/RBEC_N4_A9.pdf > Acesso em: 29 jul. 2020.

Referências Discográficas

Chico Science & Nação Zumbi, Da Lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony Music (Chaos), 1994.

____, Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music (Chaos), 1996.

Sites visitados

OLIVIERI, Antonio Carlos. UOL Educação, s/d. Cangaço — Banditismo no sertão nordestino. Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/cangaco-banditismo-no-sertao-nordestino.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em: 29 jul. 2020.

SOUZA, Paulo Henrique Vieira de. Herramienta: Revista de debate y critica marxista. Um monólogo que finge polifonia: o banditismo é uma questão de classe? Disponível em: <https://herramienta.com.ar/articulo.php?id=2415>. Acesso em: 29 jul. 2020.

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Ingridy Neirely
PET História UFS

Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe. @indygnadaney