Memórias da Ditadura: Marcelo Rubens Paiva em “Ainda Estou Aqui”
Publicado em 2015, Ainda estou aqui, do jornalista Marcelo Rubens Paiva, é um livro sobre memória. Nele, o autor viaja por lembranças de diversos estágios da sua vida, principalmente a infância, quando ocorre o seu primeiro grande trauma: a prisão e desaparecimento do pai em 1971, durante a Ditadura Militar (1964–1985), e o impacto desse acontecimento sobre a vida de toda a família. Entretanto, pode-se dizer que o foco do livro não é Marcelo ou a busca por respostas do que realmente aconteceu ao seu pai, o ex-deputado cassado Rubens Paiva, mas a sua mãe Eunice Paiva, que desde 2010 avançava nos estágios de Alzheimer, a última reinvenção da mulher que se tornou símbolo na luta pelos desaparecidos na ditadura. Ainda estou aqui é um livro sobre memória, mas, sobretudo, sobre a falta dela.
Dividindo-o em três partes, Marcelo Rubens Paiva não se utiliza de uma cronologia em seu livro, mas segue o ritmo e a ordem de suas memórias. Partindo do objetivo de esclarecer o que de fato aconteceu ao seu pai, Rubens Paiva, ao desaparecer em 1971, o autor fundamenta-se na investigação do fato pela Comissão Nacional da Verdade em 2014 para explorar depoimentos, produções jornalísticas, gravações de áudio, cartas e diversos documentos sobre vítimas, militares, governos e Atos Institucionais da Ditadura Militar. Além disso, Marcelo disserta muito didaticamente sobre os antecedentes do golpe civil-militar de 1964, como o governo de João Goulart, a realização do próprio golpe e como o mesmo se transformou em uma ditadura. Em 296 páginas, o jornalista constrói um enredo concreto e muito bem feito, rico em informação, para expor cruamente como foi viver os “os anos de chumbo” e os impactos de ser integrante de uma das diversas famílias vítimas da ditadura.
Marcelo inicia a narrativa a partir do ato de interdição judicial da mãe em decorrência do avanço do Alzheimer. Relacionando as etapas da doença da mãe à história do pai, o autor vai montando um quadro de lembranças de sua infância, juventude e vida adulta, em que ganham destaque as mudanças impostas pelo desaparecimento do homem e do político Rubens Paiva e do rumo que as vidas ligadas a ele são forçadas a tomar.
Ainda que o destaque do livro seja expor essa corajosa mulher que, aos 41 anos, se deparou com a violência do regime militar e se viu responsável pela criação de cinco filhos, é a lembrança do pai que chega a ser latente: seu sequestro, tortura e morte nas mãos de agentes do Exército vão definir para sempre as vidas que tiveram de se reinventar. As memórias que o autor compartilha com o leitor revelam não apenas o político cassado, o que surge é o homem, o pai de família, marido, filho e amigo que foi levado de casa e nunca mais voltou.
Seu pai foi deputado em um período sombrio do Brasil, que o fez ser exilado e, posteriormente, preso pelo Exército durante os anos de repressão. Apesar de nunca ter sido afirmado pelo governo vigente na época, Rubens Paiva foi torturado e morto por ser oposição à ditadura e ajudar inúmeros alvos políticos a fugirem, fazerem trocas de reféns e apoiar a resistência.
Os relatos acerca dos centros de tortura também são extremamente relevantes, inclusive, ao retratar como e porque a tortura brasileira foi considerada como “a melhor da América latina”. Além da descrição dos gritos dos presos presenciados por Eunice Paiva quando a mesma permaneceu presa por 12 dias, Marcelo passa-nos a descrição de depoimentos sobre Rubens Paiva morrendo, ensanguentado, repetindo seu nome por horas, com uma música de Roberto Carlos ao fundo. Será esse o horror da memória?
É claro que a personagem Eunice Paiva tornou-se o foco do autor: era uma mulher firme e pouco carinhosa, mas guerreira, que não chorou diante as câmeras, sempre lutou pelos seus direitos e dos outros, sem nunca desistir. Uma mulher que nunca desistiu de lutar pela justiça e levantou sua voz contra os militares, tornando-se uma autoridade sobre o direito indígena e assumindo posição importante em reuniões da ONU.
Por fim, Marcelo narra o início e o desenvolvimento do Alzheimer de Eunice, relatando os diagnósticos médicos, as dificuldades da família e o rendimento pessoal de sua mãe ao aceitar sua condição de vulnerabilidade. Dessa forma, o livro se desenvolve mantendo viva as memórias de Eunice Paiva como mãe e mulher que não se envergou com a tragédia, superando-a através de seu trabalho como advogada e sua atuação contra a ditadura. Ela não se curvou nem diante do Alzheimer: “ela ainda está aqui”, pois, apesar do relato no passado, Eunice ainda vive.
Marcelo Rubens Beyrodt Paiva, escritor, dramaturgo e jornalista brasileiro, é natural de São Paulo, onde nasceu em 1º de maio de 1959. Estudou engenharia agrícola na Universidade Estadual de Campinas, época em que, aos vinte anos de idade, sofreu o segundo grande trauma da sua vida: após saltar em um lago, fraturou uma vértebra (a quinta cervical) do pescoço ao chocar a cabeça em uma pedra, ficando tetraplégico. Após isso, em 1982, entrou para a Escola de Comunicações e Artes da USP e passou a escrever em fanzines e revistas literárias, até retratar os fatos da sua vida em seu primeiro livro, Feliz Ano Velho. Por fim, formou-se em Rádio e TV pela Universidade de São Paulo e em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas.
Referências
COMISSÃO Nacional da Verdade. (2014b). Relatório da Comissão Nacional da Verdade (Vol. 1). Brasília, DF. Recuperado de http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf
PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. 296p.
WIKIPÉDIA. Marcelo Rubens Paiva. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Marcelo_Rubens_Paiva&oldid=57075924>. Acesso em: 02 de maio de 2020.
WIKIPÉDIA. Rubens Paiva. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Rubens_Paiva&oldid=58065363>. Acesso em: 02 de maio de 2020.
