Mulheres, Inversão e Ordem

Uma discussão sobre a mulher desregrada na Idade Moderna

Juliana Carvalho
PET História UFS
9 min readJul 13, 2020

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A representação da mulher fora do esperado socialmente. Foto: Reprodução. Disponível em: Wikipedia.com.br

O livro Culturas do povo (1990) foi escrito pela historiadora norte-americana Natalie Zemon Davis, nascida em Detroit no ano de 1928. Estudou na Universidade de Harvard e concluiu seu doutorado na Universidade de Michigan. Estuda a Idade Moderna na França. Por ter tido aproximação com o marxismo na juventude e, posteriormente, firmado uma simpatia à esquerda política, sofreu perseguições pelo estado americano na década de 50, forçando-a a mudar-se para o Canadá. Seu interesse está na área de história social e cultural, flertando com a micro história, e é adepta da conversa com outras disciplinas, como antropologia, etnografia, arte e teoria literária. Pioneira na historiografia das mulheres, começa nos anos 50 a escrever sobre Christine de Pizan, poetisa e filósofa italiana que vivia de seus escritos, e anos depois dedica alguns capítulos de seu livro Culturas do povo às mulheres. Em 1974 publica um ensaio na segunda Berkshire Conference on Woman History, que se torna referência nos estudos históricos de gênero. Atualmente é professora adjunta na Universidade de Toronto.

A obra resenhada foi escrita na década de 70, e até hoje é considerada um clássico, pois ainda é utilizada como base para quem quer estudar sobre história cultural e das mulheres. A autora trouxe para a historiografia objetos de estudo, temas e abordagens que não eram tão utilizados no meio acadêmico. O livro mostra também a introdução de Davis à tentativa de aproximar a história da antropologia, algo que fica mais forte em suas obras posteriores. Ela tem um fascínio por documentos, dessa forma, traz para sua produção uma extensa gama de fontes, dos mais variados campos. Na introdução, a autora define que opta por investigar universos culturais, voltando-se a aspectos da ordem social, e não é adepta a análise de forma sistemática, e sim por meio de um conjunto de casos (DAVIS, 1990).

O capítulo Mulheres por cima é dividido em três partes. Na primeira, a autora apresenta o que seria a mulher desregrada e inicia a discussão acerca da inversão sexual. Na segunda, ela teoriza e exemplifica as formas e espaços em que ocorria a troca de papéis. Já na terceira, pega todas as análises feitas ao longo do texto e as une, trazendo uma conclusão à sua ideia.

A Europa no início da idade moderna, via o sexo feminino como um ser desregrado. O termo desregrado é definido como aquilo que é irregular, que não respeita regras, padrões e normas. Desse modo, as mulheres seriam imperfeitas, sem fé, sem medo, sem lealdade, e tais defeitos seriam então, inatos. A falha natureza feminina era comprovada pela bíblia, pois no Jardim do Éden, Eva não consegue se manter obediente a Deus, comendo a maçã e, ainda por cima, levando Adão ao pecado.

O discurso médico do século XVI defendia que as mulheres eram formadas por humores frios e úmidos, o que as tornava instáveis, enganosas e falsas. O ventre quando não satisfeito pelas relações sexuais ou pela prole, dominava o corpo, a fala e a razão da moças e senhoras, levando-as à histeria. No fim do século XVII, a medicina muda vários conceitos, porém, ainda delega às mulheres o papel de inferioridade por sua natureza frágil e oscilante.

Os defeitos femininos foram evocados por figuras famosas, como Aristóteles, que acreditava que mulheres eram passivas, receptivas, e dependiam dos homens, seres ativos, para conseguir gerar. São Tomás de Aquino, presume que são infelizes acidentes da natureza, uma falha no sêmen. Tais autores tem grande influência, então, de certa forma, ajudaram a normatizar estas concepções, que são vistas até hoje (SANTANA, 2019). Contudo, as deficiências femininas poderiam ser suprimidas através de treinamento religioso, para trazer modéstia e humildade; uma boa educação, para ensinar suas obrigações morais; trabalho, para ocupa-la, e à submissão ao marido.

Neste ponto é valido estabelecer um recorte de classe, já que o decorrer da resenha tenderá à generalização. Mulheres da elite que sofriam com a possibilidade de enclausuramento, problemas de herança e a impossibilidade de trabalhar. Chartier (2009) mostra que mulheres ricas eram incentivadas a aprender a ler, o que consiste em um privilégio, mesmo que o machismo as impedissem de aprender a escrever. Assim, podiam ler Decameron, livro de Boccacio (2013) que passa a ser altamente consumido por imaginar uma sociedade diferente, com mulheres que desfrutam de seus prazeres, o que podia ‘’acalmar o ventre’’ das leitoras. No entanto, mulheres camponesas não aprendiam a ler. Também não podiam se dar ao luxo de se voltarem ao lar, precisavam trabalhar para complementar a renda familiar. Thompson (1998) cita como camponesas lideravam motins, por serem elas as organizadoras da casa e saberem dos preços dos itens de sobrevivência. Assim, em certo nível, o desregramento da mulher trabalhadora não é uma escolha.

Já os homens aparecem como fortes e sábios, sendo seus defeitos frutos da criação que não foi digna o suficiente para torná-lo bom. Eles não sofriam de mazelas do gênero, como acontecia com as mulheres e o útero insatisfeito, no máximo, podiam ter retenção de fluidos sexuais, mas que podia ser curado com o trabalho, bebida ou o estudo. Eram a representação do divino na Terra, já que foram criados a imagem e semelhança de Deus, e as mulheres, criadas a partir da costela de Adão, tinham menos dignidade, por isso deviam submissão aos seus maridos.

A partir destas concepções, a sujeição da esposa ao marido parece correta, pois a histeria feminina poderia ser controlada pela inteligência e sensatez masculina, sendo até é corroborada pela bíblia. Assim, em um contexto de passagem da Idade Média para a moderna, período onde precisava-se reestabelecer a centralidade política para manutenção do Estado ainda frágil, as relações familiares aparecem como simbolismo sexual. A estrutura da família serve de modelo para as novas relações de ordem política e social que estavam se formando, deste modo, a submissão da esposa ao marido servia para mostrar como os subordinados deveriam agir com o senhor.

O simbolismo sexual usa do feminino para ilustrar a subordinação hierárquica, mas também para mostrar o caos e violência. Algumas pinturas da época vão mostrar mulheres como agentes da destruição e desordem. No quadro Dulle Griet, de Bruegel, há Meg, mulher guerreira, louca e cega. Também conta a Santa Margarida de Antioquia matando um demônio, demonstrando a mulher fora de seu papel social.

Dulle Griet. Foto: Reprodução. Disponível em: Wikipedia.com.br

Assim, chega-se a um ponto de virada no texto, onde a autora revela que a Margarida de Bruegel não é um ponto fora da curva na Europa pré-industrial. Ela aponta que as sociedades hierárquicas adoram demonstrar o mundo de cabeça para baixo, ou seja, na literatura, artes e festas, a inversão de papéis sociais e sexuais era muito apreciada. Davis explica que tais práticas, na maior parte das vezes, não estava ligada à homossexualidade ou problemas com a identidade de gênero, tendo, na verdade, um ‘’significado psicossexual e cultural mais amplo’’ (DAVIS, 1990, p. 111). A lógica tida era que representar o padrão de forma distorcida ajudaria a manter a ordem na vida real.

O capítulo apresenta duas formas de inversão: A troca de sexo, em que homens se vestem de mulheres e vice-versa; e a troca de papel social, em que há representação de mulheres fora do esperado socialmente, a mulher desregrada. Mesmo a primeira sendo de grande interesse, esta resenha terá como foco as representações irregulares femininas nas artes e seu impacto quando aconteciam na vida real.

Nas artes em geral, a troca de papel social pode ser vista através das reproduções da mulher desregrada. As peças cômicas a mostram dando vazão as suas vontades, batendo em seu marido, de forma selvagem e megera etc. Tais ilustrações tinham caráter pedagógico, pois, ao final, a protagonista acabava se dando mal, como acontece na a história de Boccacio (1374), em que a papisa Joana ganha o papado, porém, esta tem uma revolta no ventre, fica grávida, e dá à luz durante uma procissão, morrendo na prisão do cardeal. Por ser desregrada, tais personagens têm autoridade para indagar a ordem, dessa forma, são alvo dos autores como figura contestatória. Ainda que a mulher não triunfe, a parte na qual questiona torna-se referência para a sociedade que assiste, pois sempre que virem algo que fuja da normalidade compararão com ela.

Ao mesmo fenômeno podem ser atribuídos vários usos, então, as vezes as histórias sobre a mulher desregrada mantinham as leitoras no seu lugar, e as vezes podiam servir como fonte de inspiração (mas as que interpretam assim geralmente são mulheres excepcionais, exceções). No entanto, representações invertidas serviam a todas como uma válvula de escape, permitindo que haja uma brecha, mesmo que momentânea, na estrutura padrão. Para umas levava à intensificação do desejo de revolta, para outras, aliviava a curiosidade de como seria viver em outra conjuntura.

Já nas inversões da vida real, mulheres mostram que conseguem controlar seus instintos, por exemplo, santas que viveram na castidade igual a monges. Também podem usar do travestismo para defender a ordem e valores, como mulheres que resgatam maridos da prisão, reestabelecendo a honra familiar. Por mais contraditório que pareça, a tentativa de manter a ordem vem como forma de ‘’apoiar causas legítimas, não para revelar a verdade a respeito das relações sociais’’ (DAVIS, 1990, p.114). Tais manifestações trazem desconfiança, pois as pessoas começam a pensar sobre as capacidades femininas, porque se ela, vestida de homem, consegue, por exemplo, organizar uma manifestação, talvez a sua falta de racionalidade não seja tão verídica (mas, mesmo assim, não há resistência à estrutura).

Por muito tempo, o discurso médico vai colocar a mulher como ser frágil, instável, falso, sem credibilidade e controle instintivo, o que reverbera em vários campos sociais. Era definido o que era cabível a uma moça séria, e tudo que fugia a essa determinação era considerado desregramento. As artes usam do padrão da mulher desregrada para fazer peças e contos, trazendo nesta personagem a liberdade em criticar a sociedade. O travestismo feminino faz com que mulheres vestidas de homens mostrem que também conseguem controlar seus instintos. Então, mesmo que tais manifestações não tivessem intenção de trazer reflexões, isso acontece.

A ideia da mulher por cima possibilitou que as feministas pensassem acerca das possibilidades das mulheres. Apontavam que ‘’em muitas mulheres existe uma grande coragem, força e audácia para iniciar todo tipo de tarefas fortes, e concluí-as, como o fizeram os grandes homens’’ (DAVIS, 1990, p.122), assim, as características colocadas sobre elas talvez não fizessem jus a verdade. O desregramento na vida real passa a ser visto nas relações familiares camponesas, em que algumas esposas conseguiam manipular seus maridos; ou parceiras que jogavam tudo para o ar, atormentando e espancando seu companheiro. Também aparece no carnaval e festividades, onde a mulher tinha licença social para bater em seu cônjuge. A liberdade cedida pelo seu desregramento se estendia a manifestação, reclamando de padres, impostos, e comandando revoltas. Mas mesmo com tanta firmeza de seus atos, ainda não eram julgadas igualmente, pois teoricamente eram levadas por seus impulsos, cabendo a pena ao marido, que não soube conte-la.

Ao trazer a imagem da mulher desregrada, Mulheres por Cima, ajuda a pensar a relação entre os sexos, observando as normas tidas na idade moderna. As inversões conquistam a vida cotidiana, trazendo a afirmação da força da estrutura hierárquica, mas também oferecendo ‘’novas formas de pensar sobre o sistema e de reagir a ele’’ (DAVIS, 1990, p.121). A autora reafirma sua escolha temática, citando que as inversões carnavalescas e literárias merecem um estudo mais aprofundado, pois, este capítulo foca nos papéis sexuais juntos a comportamentos e atitudes de desordem. O feminino modificado é multifacetado, pois, reafirma a estrutura, mas também promove resistência a ela.

REFERÊNCIAS

BOCACCIO, Giovanni. Decameron. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: L&PM, 2013. pp. 1–60/133–190.

BOCCACCIO, G. De Claris Mulieribus/Die Groben Frauen. Stuttgart: Reclam, 2003. Trad. e Notas de Irene Ergen e Peter Schmitt.

BRUEGEL, Pieter. Dulle Griet. 1563. Óleo sobre tela, 115 cm × 161 cm.

CHARTIER, Roger (org). História da vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pp. 113–158.

DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura do início da França Moderna. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. pp. 107–127.

SANTANA, Mirian Ilza. A História da Mulher na Filosofia. Disponível em: <https://www.infoescola.com/sociedade/a-historia-da-mulher-na-filosofia/>. Acesso em: 19 de jun de 2020.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

WIKIPEDIA. Dulle Griet (Peter Brigel, o Velho). Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Dull_Gret>. Acesso em: 19 de jun de 2020

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