O Conto da Aia: uma distopia do futuro?

Camile Victória
PET História UFS
Published in
4 min readApr 20, 2020
(Capa do livro. Edição de 2017. Foto: Reprodução. Fonte: amazon.com.br)

The Handmaid’s tale ou em tradução, O Conto da Aia é um romance distópico da canadense Margaret Atwood (1939), produzido no ano de 1985. Embora sua obra seja classificada como pertencente ao gênero de ficção científica, a autora a considera como ficção especulativa, pois para ela os sucedidos acontecimentos do livro não são destoantes da humanidade, desse modo, as perspectivas presentes na obra são baseadas em fatos históricos longínquos adaptados a uma realidade futurista, uma vez que, a história se passa em um futuro próximo.

O ponto de partida para a construção da história se dá quando um grupo intitulado “Filhos de Jacó” empreendem um golpe civil nos Estados Unidos e fundam a República de Gilead. Essa nova sociedade se constitui como uma ditadura dogmática comandada por homens ricos que anularam completamente as mulheres e que são guiados pelos preceitos cristãos, são eles intitulados de Comandantes. Agora com uma ditadura totalitária teocrática instaurada, Deus é a explicação e justificativa para todas as coisas.

O fundamento para implantação dessa ditadura é alicerçado sob a justificativa de que a liberdade que as mulheres tanto lutaram, principalmente a liberdade sexual, abriu caminho para a cultura dos contraceptivos e promiscuidade, o que gerou uma anomalia de fertilidade reduzida. Assim, a taxa de natalidade encontrava-se quase nula e mesmo as mulheres que queriam ter filhos, não conseguiam. Desse modo, a sociedade norte-americana estava fadada a estagnação e logo, ao desaparecimento.

É em virtude desse cenário “apocalíptico” que surgem as Aias. Elas são uma pequena quantidade de mulheres que ainda são férteis. Em meio à ressignificação do papel da mulher trazida pela República de Gilead, as Aias são arrancadas das suas famílias e são transformadas em meros objetos de reprodução. Inicialmente, são levadas para o grande centro vermelho, onde passam por uma espécie de “lavagem cerebral” à base de extrema violência física e psicológica. Lá, são coagidas a seguirem todas as normas de Gilead e não contesta-las. À posteriori, são enviadas para as casas dos Comandantes, que idealizaram como preceito base para essa ditadura teocrática à institucionalização do estupro.

(Cena da série The Handmaid’s Tale. 2017)

Nesse âmbito, as Aias são obrigadas a viverem com os Comandantes e suas esposas. Assim como todas as mulheres em Gilead, são privadas de inúmeras coisas como: ler, escrever, se expressarem ou participarem de decisões públicas. Enquanto presa na casa de um Comandante, a Aia perde seu nome, sua identidade e sua vida é “arrancada” de si. Durante seu período fértil é submetida à “cerimônia”, que se inicia com uma “reunião bíblica” onde todos da casa juntam-se na sala enquanto o Comandante recita a passagem bíblica do Velho Testamento — Gênesis 30. Em seguida, a Aia é obrigada a manter relações sexuais com o Comandante, tudo isso ocorre com a participação da esposa e o prazer é veementemente proibido. Quando a Aia finalmente tem filhos, é descartada e mandada para a casa de outro Comandante. As crianças são cuidadas e criadas exclusivamente pelas esposas e as Aias não podem em hipótese alguma manter contato com os seus verdadeiros filhos.

Uma das principais formas coercitivas para aqueles que de algum modo se impunham contra Gilead são as punições públicas, a exemplo, o enforcamento. Homossexuais, médicos “traidores”, Aias, ou quem quer que atente contra a república é submetido a essa punição. Nesse inteirem, a autora baseou-se nas perspectivas da Idade Média, onde as pessoas eram submetidas à forca quando faziam algo “errôneo”. Parafraseando Foucault (1926–1984), em seu livro “Vigiar e Punir” (1987) o autor afirma que as execuções públicas se transformavam num grande teatro, em que as práticas antigas buscam envergonhar e servir de exemplo de forma que cause temor. Ainda, na obra do filósofo é demonstrada no ano de 1760 a invenção de uma máquina de enforcamento que contava com uma espécie de suporte, que se escamoteava por baixo dos pés do condenado, sendo o que justamente se vê em Gilead, uma máquina de enforcar, tornando-se uma modernização das práticas mais remotas do Período Medieval.

Destarte, no Conto da Aia as práticas punitivas também encontram-se no âmbito do lar, narrativas recorrentes mostram como os maridos surram suas esposas para puni-las de algo feito. Sob uma ótica da contemporaneidade, tal fato não é obstante, visto que, segundo pesquisas realizadas pelo Datafolha em 2017 mais de 500 mulheres sofrem agressão física a cada hora somente no Brasil.

(Cena da série The Handmaid’s Tale. 2018)

Em suma, o livro é contado em primeira pessoa, sob narrativa de uma Aia, chamada Offred. Sendo da primeira geração de Aias, Offred se lembra do mundo pré-Gilead e conta sua história a partir das nuances das suas memórias. Falando profundamente sobre questões que perpassem entre vaidade, egocentrismo e preconceito. Bem como, empoderamento, força e resistência perpetuam o livro e o torna instigante.

REFERÊNCIAS

ACAYABA, Cíntia; REIS, Thiago. Mais de 500 mulheres são vítimas de agressão física a cada hora no Brasil, aponta Datafolha. G1, 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/mais-de-500-mulheres-sao-vitimas-de-agressao-fisica-a-cada-hora-no-brasil-aponta-datafolha.ghtml. Acesso em: 20, abril, 2020.

ATWOOD, Margaret. The handmaid’s tale. Vol. 301. Estados Unidos: Everyman’s Library Classics &, 2006.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987

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Camile Victória
PET História UFS

Graduanda em História pela UFS, ex-bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET História) e estagiária do Tribunal de Justiça no Memorial do Poder Judiciário