O crime de honra e o patriarcado em Crônica de uma morte anunciada

Maria Beatriz
PET História UFS
Published in
6 min readSep 28, 2020
Figura 1 Gabriel García Márquez. Foto: reprodução.

Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1982, o colombiano Gabriel García Márquez (1927–2014) é um dos escritores mais importantes do século XX. Foi jornalista, cronista, novelista, ativista político e o maior representante do Realismo Mágico latino-americano[1].

Nesse texto, trataremos uma das obras que em sua essência, mescla o jornalismo com a Literatura jornalística, isto é, o “jornalismo mágico”. E observando a função originalmente compreendida do papel do jornalista na América latina, é possível conceituá-lo como sendo o intérprete dos fatos, e a notícia uma corrente de opiniões que contém o reflexo do cenário político e social do país ou região habitada (HERSCOVITZ, 2004).

Crônica de uma morte anunciada (1981) compõe um relato que apresenta um narrador personagem e este busca durante toda a trama, reconstruir, a partir das memórias dos envolvidos, a fatalidade que desponta o início da obra, e a partir disso, investigar as motivações do crime ocorrido. Apesar dos relatos objetivos e sem grandes devaneios, o caráter intuitivo está presente desde o primeiro instante da crônica, tornando-a ainda mais instigante.

Dessa forma, nos debruçaremos sobre umas das questões centrais da obra em destaque: O crime de honra.

Figura 2 Foto: reprodução. Fonte: http://www.universodosleitores.com/2015/01/cronica-de-uma-morte-anunciada-de.html

“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo.” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p.7). O assassinato de Santiago Nasar é motivado pela necessidade de restaurar a honra de Ângela Vicário, filha mais nova de uma família pobre, religiosa e conservadora. A moça fora devolvida algumas horas após a consumação do seu casamento com Bayardo San Román, quando este a acusara de não ser virgem. Logo em seguida, após muita relutância em revelar o nome do “culpado” pela sua desonra, a jovem o diz, e a partir disso, a morte anunciada de Santiago Nasar espalha-se pela pequena cidade do interior, e o “crime de honra” pelas mãos dos gêmeos Pedro e Pablo Vicário é executado.

O aspecto patriarcal que recai sobre a vida de Ângela Vicário é evidenciado muito antes do escândalo que impulsionou a busca pela restauração de sua honra, bem como a reputação da sua família.

Ângela Vicário não esqueceu nunca o horror da noite em que seus pais e suas irmãs mais velhas com seus maridos, reunidos na sala de casa, impuseram-lhe a obrigação de casar com um homem que mal tinha visto. O argumento decisivo dos pais foi que uma família dignificada pela pobreza não tinha direito de desprezar aquele prêmio do destino. Ângela Vicário mal se atreveu a insinuar o inconveniente da falta de amor, porque a mãe o demoliu com uma única frase: — O amor também se aprende. (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p.47)

O Patriarcado é um sistema social no qual o homem desempenha um papel de senhorio, e desta forma tem autoridade, controle e domínio sobre as mulheres, os filhos, as propriedades e os bens culturais (ANDRADE 2014), sendo assim, é possível perceber a presença dessas relações de poder nas quais as figuras femininas da obra são submetidas. Diante disso, Ângela Vicário encontra-se inerte perante as decisões sobre o destino de sua vida. Isso se dá pelo fato do homem que a escolheu para o matrimônio, fazer parte de uma família rica. Além disso, a presença religiosa da Igreja Católica é fundamental para sustentar a moral conservadora e os códigos de honra presentes nessas estruturas estritamente patriarcais, como a sociedade retratada por García Márquez.

Além disso, a educação que as moças recebiam baseava-se nos costumes moralmente aceitos, e uma série de tabus a permeava. É possível observar com precisão a dominação masculina na narrativa de forma crua, explícita e detalhada. No trecho a seguir, a mãe de Ângela afirma que suas filhas estavam capacitadas a desenvolver o papel de noivas/esposas, pois havia nelas a perfeição que se espera de uma mulher. “Exceto por isso, pensava que não havia filhas mais bem-educadas.’São perfeitas’, ouvia-a dizer com frequência. ‘Qualquer homem será feliz com elas, porque foram criadas para sofrer’.” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p.43)

O outro lado dessa estrutura patriarcal incide também nas figuras masculinas. Analisando o exemplo dos irmãos Pablo e Pedro Vicário, que precisam a qualquer custo executar um crime em nome da honra, mesmo que este signifique a mudança brusca em suas vidas, bem como a morte de um companheiro, a quem não se tinha intenção alguma de matar, se não fosse pelas exigências morais. Em suma, o impacto do assassinato “honroso” permitiu que Santiago Nasar fosse morto sem ao menos saber pelo quê.

Outro reflexo dessa estrutura é o Bayardo San Román, que sendo este um forasteiro e com um passado desconhecido, alegou ter se alojado na cidade em busca de uma moça para casar-se. Entretanto, por desfrutar de um grande poder aquisitivo e ser membro de uma família conhecida pelo mesmo motivo, o personagem se destaca pela arrogância e por tentar comprar tudo e todos, incluindo a família da moça que escolheu para casar sem qualquer tentativa de conquista, antes a escolheu como um produto na prateleira. Desta forma, é mais do que explícito o poder de dominação masculina, bem como a imposição de suas vontades diante das mulheres em questão.

A proprietária da pensão de solteiros onde vivia Bayardo San Román contava que ele fazia sesta em uma cadeira de balanço da sala, em fins de setembro, quando Ângela Vicário e a mãe atravessaram a praça com duas cestas de flores artificiais. […] Bayardo San Román, acordando, perguntou quem era a mais jovem. A proprietária respondeu que era a filha mais moça da mulher que a acompanhava, e que se chamava Ângela Vicário. Bayardo San Román seguiu-as com o olhar até a outra extremidade da praça. — Tem um nome muito bem posto — disse. Em seguida recostou a cabeça no espaldar e voltou a fechar os olhos. — Quando acordar — disse — lembre-me que vou me casar com ela. (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p.39)

Assim, todos os elementos da vida da mulher e de sua intimidade não a pertenciam, eram de dominação da sua família e principalmente de controle do homem. Contudo, a mesma esfera de dominação masculina acaba punindo, tornando os dominadores reféns dos seus próprios ideais. A morte de Santiago Nasar evidencia com precisão, a figura masculina sendo alvo da defesa e da preservação dos costumes patriarcais, que em sua essência é brutal, e nesse caso, resultando num crime sem espaço para que a vítima se justifique ou saiba o porquê. E todas essas ações estritamente violentas, são justificadas em nome da honra.

A partir dos exemplos citados e observando o plano de fundo da obra como um todo, o que se pode compreender além da violência física é a violência subentendida, desencadeada pelas relações de poder, isto é, uma violência patriarcal. Na qual as motivações estão paralelamente atreladas aos códigos de honra contidos na sociedade, bem como nos comportamentos e nas formas de se relacionar dos indivíduos. E nesse sentido, Crônica de uma morte anunciada aborda com muita sutileza as diversas perspectivas de uma sociedade baseada em códigos conservadores.

[1]Corrente artística que surge em meados do século XX na América Latina, também conhecido como realismo maravilhoso. O movimento tem como principal característica mostrar o irreal como algo corriqueiro e comum.

Referências Bibliográficas:

ANDRADE, Cristiane Peixoto. O PATRIARCADO NA COMPOSIÇÃO DE CRÓNICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ. 2014. 70 f. Dissertação (Mestrado) — Curso de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.

HERSCOVITZ, Heloiza. O Jornalismo Mágico de Gabriel García Márquez. Estudos em Jornalismo e Mídia, Florianópolis, Sc, v. 1, n. 2, p. 175–194, jul. 2004.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Crônica de uma morte anunciada. 55. ed. São Paulo: Record, 1981. 157 p. Tradução de Remy Gorga, Filho.

Sites visitados:

BEAUREPAIRE, Luiz Guilherme de. Crônica de uma morte anunciada. 2016. Disponível em:<https://www.bonslivrosparaler.com.br/livros/resenhas/cronica-de-uma-morte-anunciada/4534>Acesso em: 14 de Set de 2020.

ARAÚJO, Felipe. Realismo Mágico. Disponível em: https://www.infoescola.com/literatura/realismo-magico/. Acesso em: 20 set. 2020.

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