O Lobo Mau Soviético

Everton dos Santos
PET História UFS
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18 min readMay 19, 2020
Foto: Reprodução. Fonte: br.pinterest.com

Nos últimos tempos, voltou a ser uma prática rotineira taxar as pessoas de comunista. São inúmeros os indivíduos — muitas vezes de pensamentos opostos — que são qualificados como pertencentes a essa espécie de seita que pretende acabar com a liberdade e a propriedade privada no país. Tal preconceito, que esteve presente durante os séculos XIX e XX, nos dias atuais parece ter voltado com força total. Mas então, o que é comunismo? E porque é tão temido? Buscarei nesse texto abordar um pouco da história de tal conceito e seus usos políticos. O intuito é tentar entender a utilização tão frequente da palavra comunismo, e qual significado e finalidade os emprega aqueles que a manipulam.

Para iniciarmos essa jornada, vamos analisar o surgimento da palavra comunismo. Esta vem do latim Communis, e significa comum, universal. De um modo geral, costumava ser usada para descrever sociedades igualitárias. Uma das suas primeiras aparições é no filósofo grego Platão (aproximadamente 427 a.C. — 347 a.C.), que em sua obra A República (lançado por volta de 380 a.C.), descreve uma sociedade utópica na qual as desigualdades sociais são superadas com o fim do vínculo familiar e da propriedade privada. As relações entre homens e mulheres seriam coordenadas pelo Estado e teriam o fim único da procriação, os filhos seriam criados e educados pelo próprio Estado, sem conhecer seus pais. Com isso Platão imaginava promover nos indivíduos um maior zelo pelo patrimônio público, já que o povo, em sua totalidade, formaria uma única família. As terras e as demais riquezas seriam divididas entre os cidadãos, de forma a que ninguém tivesse além do que o necessário para sua subsistência.

No entanto, apesar de algumas semelhanças com as ideias de Platão, o conceito de comunismo começará a ganhar a forma com que o definimos hoje a partir do século XIX. Nesse período, a Europa vivia o pós-Revolução Industrial (1760–1840), momento em que inúmeras inovações tecnológicas trouxeram mudanças significativas para essa sociedade. De modo geral, as inovações do período possibilitaram a substituição de uma economia agrária e manufatureira em economias mecânicas e industriais, com uma concentração do capital financeiro cada vez maior.

Apesar da ideia de progresso estar intrinsecamente ligada a tais inovações, elas trouxeram consigo inúmeras mazelas que deixariam marcas até os dias atuais. O uso intensivo de carvão e ferro, o despejo de dejetos das fábricas na natureza, a fumaça lançada pelas chaminés, tudo isso contribuiu para que cidades sofressem com a poluição no próprio século XIX, representando o início do processo de degradação ambiental intensivo, que desemboca nos problemas relacionados ao aquecimento global da contemporaneidade. Além disso, a situação dos trabalhadores nas fábricas era desumana. Homens, mulheres e crianças eram contratados para expedientes que duravam entre 14 e 16 horas diárias. Trabalhavam sob constante pressão e vigilância de seus empregadores. Baixos salários. As condições de vida eram precárias. Na Europa pós-Revolução Industrial, a maior parte das pessoas tinha a vida resumida ao trabalho.

É nesse contexto que vai surgir na Europa uma nova classe social formada pelos próprios trabalhadores das fábricas: o proletariado. Segundo o historiador E. P. Thompson (1924–1993), em sua obra A Formação da Classe Operária Inglesa (1963), pode-se constatar o surgimento da classe operária a partir dos primeiros momentos da Revolução Industrial, pois apesar de não haverem ainda organizações sindicais mobilizadas em busca de melhores condições no trabalho — que surgirão somente a partir da década de 1830 — já existem indícios de uma consciência de classe em meio ao proletariado. Era uma forma de resistência ao avanço industrial, que tomava do antigo artesão os meios de produção e o impossibilitava de produzir suas manufaturas, restando somente sua força de trabalho, entregue aos patrões como forma de sobrevivência.

Nesse meio social, vão surgir inúmeras teorias políticas que oferecem uma contraposição ao capitalismo nascente, elas apresentam novas alternativas econômicas que atendem as demandas do proletariado, e ficaram conhecidas pelo título de Socialismo. Dentre as diversas possibilidades difundidas, podemos destacar algumas vertentes principais, são elas: o cooperativismo, sistema planejado a partir da união entre pessoas ou grupos numa mútua colaboração em prol de atingir interesses em comum; o anarquismo, doutrina que abomina quaisquer dominações, hierárquicas ou estatais, e propõe uma governabilidade exercida por todos os cidadãos, tendo como base uma sociedade igualitária; e o individualismo, que se pode definir brevemente como uma negação a toda e qualquer doutrina política e religiosa — incluindo o socialismo — pois todos perpassam por interesses pessoais e perdem seu valor, tal concepção pode ser considerada uma espécie de anarquia individualista.

Dentro dessas concepções tidas como socialistas, os alemães Karl Marx (1818–1883) e Friedrich Engels (1820–1895) irão propor uma das mais relevantes teorias da História da humanidade, conhecida posteriormente pelo nome de marxismo. Antes de adentrarmos em sua teoria, lhes convido a conhecer um pouco sobre a biografia de ambos. Marx foi um filósofo, historiador, sociólogo e economista. Descendente de uma família judia de classe média, ingressou no curso de filosofia em 1838 e tornou-se doutor em 1841. No ano de 1843, casa-se com Jenny von Westphalen (1814–1881), com quem teve 7 filhos. Ao escrever textos críticos contra o regime prussiano, acabou exilado, indo passar algum tempo na França — onde inicia a elaboração de sua famosa teoria –, e em 1849, se instala em Londres. Durante boa parte da vida Marx passará por dificuldades financeiras, necessitando de auxílio do companheiro Engels. Morre em março de 1883, vítima de uma complicação pulmonar. Entre suas produções, destacam-se os três volumes de O Capital (1855–1885–1894), e as obras publicadas em parceria com Engels, A Ideologia Alemã (1932) e O Manifesto Comunista (1848).

Friedrich Engels foi um filósofo e político alemão, filho de um rico empresário da indústria têxtil. O que de certa maneira o permitiu ter uma vida financeiramente estável, e a observar de perto as condições de vida dos operários. Também obrigado a exilar-se da Alemanha por seu envolvimento em movimentos revolucionários, muda-se para Londres, onde gerenciará uma das fábricas têxteis da família e contribuirá com Marx na estruturação e difusão dos ideais comunistas. Suas principais obras individuais foram A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845) e As origens da família, da propriedade privada e do Estado (1884). Além de ajudar a revisar e concluir os dois últimos volumes inacabados de O Capital de Karl Marx.

A teoria marxista, no geral, é repleta de conceitos e ideias, abordá-la em sua totalidade seria demasiada empreitada, indo além dos objetivos do texto. Por isso, explicarei brevemente apenas as que julgo mais relevantes na presente discussão.

O primeiro ponto da teoria marxista a ser abordado é o da luta de classes. “A História de todas as sociedades até hoje existentes é a História da luta de classes”. (ENGELS e MARX, 2005) É dessa forma que se inicia O Manifesto Comunista (1848). Para Marx, os conflitos travados entre as classes dominantes e as classes dominadas são o motor da História da humanidade e possibilitam a ocorrência de mudanças radicais na condição social estabelecida. E qual seria o fator responsável por definir qual classe seria a oprimida e a opressora? A posse privada dos meios essenciais para produzir as mercadorias necessárias em determinado contexto histórico, ou seja, os meios de produção. Uns são proprietários, outros possuem apenas sua força de trabalho e devem submetê-la em favor da classe dominante. No feudalismo, os nobres tinham a posse da terra. No capitalismo da segunda metade do século XIX, a burguesia dispõe das máquinas para produção em série.

Segundo Marx, a estrutura das sociedades poderia ser dividida em duas partes, a infraestrutura e a superestrutura. A infraestrutura, a base da sociedade, é formada por seu modo de produção, que é um conjunto da força de trabalho mais os meios de produção, e pelas relações de trabalho que ali são praticadas. Em contrapartida, a superestrutura é formada a partir de todo o aparato ideológico, político e social necessário para que a classe dominante não só exerça, mas também convença a sociedade acerca da manutenção da ordem estabelecida. Logo, conforme o modo de produção sofra alterações, os mecanismos utilizados para essa dominação também irão variar. Cria-se assim uma via de mão dupla, pois enquanto que a infraestrutura molda a superestrutura, essa por sua vez, existe para que as relações de produção se mantenham como estão.

Fazem parte da superestrutura: as religiões, as ideologias, o direito, a cultura, a moral, a política e o Estado, cuja concepção merece um destaque especial. Segundo a teoria marxista, o Estado vai surgir justamente da necessidade da classe dominante em salvaguardar seus interesses diante das classes dominadas. Utilizando-se para tal de meios de regulação jurídicos, e dispondo de provimento militar. Dessa forma, teria uma função repressiva para manutenção da ordem estabelecida através da força.

De acordo com o que fora acima explicado, podemos entender agora o que Marx propõe como forma de gerar uma nova estrutura social em que não mais houvesse a exploração do trabalhador em prol do enriquecimento da classe dominante. Para tal, seria necessária uma revolução, pois a luta seria o único meio de tomar o poder da burguesia, que não o entregaria pacificamente. O proletariado deveria tomar os meios de produção, socializando-os sob a regulação estatal do que Marx chama de ditadura do proletariado, essa primeira fase foi denominada de socialismo. E é nela em que se criará as bases para a formação de uma sociedade igualitária, e consequentemente, sem luta de classes. Logo, na segunda fase da revolução, intitulada de Comunismo, o próprio Estado seria abolido, seguido de um enfraquecimento dos demais aspectos presentes na superestrutura. Isso porque não mais seria necessário a presença de meios legitimadores da opressão às classes dominadas.

Por fim, vale ressaltar que Marx e Engels se utilizam do conceito de Comunismo, apenas com o intuito de distinguir sua teoria dos demais estudos tidos como socialistas na época. Inclusive o próprio Marx, por diversas vezes, utilizará de ambos os termos para definir sua tese. Essa separação entre Socialismo e Comunismo dar-se-á somente a partir do século XX, quando novas interpretações da ideologia marxista irão surgir. Dentre as quais, evidencio a de Lênin (1870–1924), líder da Revolução Russa (1917). Ele fará essa distinção teórica, pondo de um lado as ideias socialistas, que buscam os interesses das classes subalternas a partir de reformas sem mudanças bruscas na estrutura da sociedade. E do outro lado o Comunismo, a verdadeira teoria revolucionária de Karl Marx. Essa vertente foi amplamente difundida mundialmente e ficou conhecida pelo nome de marxismo-leninismo. E é dessa corrente teórica que busco tratar nesse texto.

Passemos adiante para a segunda parte do texto, na qual adentrarei no tema anticomunismo. Para melhor compreender essa aversão a teoria marxista, precisamos entender o panorama político após a Segunda Guerra Mundial (1939–1945). Com o fim do conflito, os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) podem ser consideradas as grandes vencedoras. Por mais que as perdas tenham sido imensas, especialmente do lado soviético, em que as duras batalhas travadas em seu próprio território contra a Alemanha causaram perdas consideráveis. Apesar disso, é inegável o prestígio político e econômico adquirido por ambas as potências dentro daquele cenário devastador. Porém, encerrada a guerra, que conseguiu unir duas visões ideológicas opostas contra um inimigo comum, o nazifascismo, os projetos hegemônicos de ambas tornaram-se inconciliáveis, dando início ao período histórico conhecido como Guerra Fria (1947–1991).

O fato é que o comunismo, dentro de seu ideário possui um teor internacionalista de expansão de seus ideais. Demonstrada inclusive pela própria organização internacional criada por Lênin — Internacional Comunista — que tinha como objetivo exportar a revolução para outros países europeus. Empreitada malsucedida, em partes, pela incapacidade de percepção dos soviéticos de observar as particularidades da Revolução Russa, notando que esta não poderia se reproduzir em contextos distintos utilizando-se dos mesmos moldes.

Com a chegada de Stalin (1878–1953) ao poder, essa política externa sofrerá algumas modificações, pois para seu novo líder, os esforços da URSS deveriam estar focados em promover seu próprio reerguimento financeiro, passando a cooperação com os partidos comunistas estrangeiros para segundo plano. Porém, a própria necessidade de garantir a criação de uma barreira para que o capitalismo não adentrasse em seu território, fez com que após a divisão realizada entre os líderes de estado da Tríplice Aliada na Conferência de Ialta (1945), a URSS buscasse abranger em sua zona de influência os países da Europa oriental. Formando assim a Cortina de Ferro, como forma de conter o avanço capitalista.

Mapa Cortina de Ferro. Foto: Reprodução. Fonte: br.pinterest.com

Do outro lado dessa disputa, temos o capitalismo estadunidense, que via no avanço soviético um risco a seus interesses. Nesse momento, os EUA, que durante o século XX adotavam práticas isolacionistas, agora iniciam um processo de intervenção direta nos países periféricos. Era necessário impedir a expansão do modelo econômico comunista no mundo. Para uma economia em plena expansão como a dos EUA, se torna importante ampliar cada vez mais seu mercado consumidor, e abrir espaços para a entrada de suas transnacionais.

A partir disso foram criados projetos de auxílio financeiro, como o Plano Marshall, que visavam a reconstrução das economias europeias devastadas após a Segunda Guerra, incluindo os países que haviam sido inimigos no conflito. Porém, a ajuda não era gratuita, para recebê-la era necessária uma ampla colaboração econômica com os EUA. Obviamente que o auxílio não fora destinado a URSS e demais países pertencentes a Europa Oriental.

Mas seria equivocado tratar a Guerra Fria apenas do ponto de vista econômico. Isso envolve outras questões como a ideologia de um país que se considerava destinado a estar à frente dessa nova ordem mundial, moldando-a a partir de seus interesses. Além de servir como uma difusão do American way of life, expressão utilizada para descrever o modo de vida americano baseado na “liberdade”, individualismo e consumismo desenfreado.

Inclusive, essa guerra contra o comunismo também foi uma constante nas relações diplomáticas com os países da América Latina. O que resultou na erupção de inúmeros regimes antidemocráticos com a cooperação estadunidense. Incluindo a ditadura civil-militar no Brasil, instaurada com o Golpe de 1964. No geral, eram governos com fortes políticas anticomunistas, com o objetivo de reprimir os projetos políticos de esquerda, como forma de preservar seu domínio no continente.

O medo que os EUA tinham da instauração de um regime comunista em território latino-americano era baseado em três pontos. O primeiro é que o comunismo era uma forma de governo que, após ser implantado, era pouco provável que houvessem divisões e conflitos internos. Em segundo lugar, a crença na impossibilidade de um povo escolher de forma democrática um regime comunista, este somente chegaria ao poder de forma ilegítima. E por fim, a teoria dominó, ou seja, a convicção de que caso algum país adotasse tal ideologia política, as nações vizinhas seguiriam o mesmo caminho.

Porém, não é somente na política externa que a luta anticomunista será travada. No interior da sociedade estadunidense esse embate será intenso. E quem melhor soube aproveitar desse período de histeria coletiva fora o senador Joseph McCarthy (1908–1957). Ele empreendeu, na década de 1950, uma caçada feroz aos comunistas em solo americano, tratada com o mesmo grau de seriedade com que se combatia o crime organizado. Fato histórico que ficou conhecido sob o nome de macarthismo, devido à grande influência do senador.

Tal mobilização foi caracterizada pela utilização de inúmeros métodos de difamação e censura contra indivíduos que apresentassem qualquer inclinação aos ideais marxistas, mesmo que na maioria dos casos não houvessem evidências concretas. Os supostos traidores eram convocados a comparecer ao Comitê de Ações Antiamericanas com o intuito de explicarem seu envolvimento com a ideologia comunista. Os que se recusavam, passavam a sofrer graves perseguições que afetavam diversos fatores de sua vida pessoal. São muitos os casos de indivíduos que não conseguiam arranjar emprego, ou que perderam a guarda dos seus filhos, por exemplo.

Os simpatizantes de tal ideologia eram tidos como um grande perigo aos EUA, visto que poderiam estar presentes inclusive em cargos de extrema importância, e revelar segredos de Estado para os soviéticos, ou sabotar a economia promovendo greves junto aos sindicatos. Então, buscando proteger o modo de vida norte-americano, que preza pela liberdade individual, a sociedade norte-americana promoveu uma intensa repressão que ia de encontro ao livre pensamento e o exercício dessa suposta liberdade.

Destaca-se também nesse período a grande quantidade de filmes anticomunistas lançados pela indústria cinematográfica norte-americana. Durante esse período de maior repressão, que durou entre 1950 e 1957, tornaram-se raras as obras que buscavam discutir questões sociais, o que poderia facilmente ser visto como uma atitude comunista, e gerar futuras complicações aos envolvidos. Existirá uma certa tendência, nesse momento, de filmes muito mal produzidos, porém com forte propaganda anticomunista, que serão responsáveis pela difusão de boa parte das características do estereótipo do comunista que chegou até nós a partir do consumo de tais produções Hollywoodianas.

É bastante significativo notar que esse terror ao comunismo estabelecido na sociedade foi um meio utilizado para se beneficiar politicamente, a partir do prestígio que o movimento macarthista proporcionou aos seus principais dirigentes. E não estou me referindo ao senador McCarthy, ele morreu em 1957, dizendo-se arrependido da perseguição que liderou. Mas sim de dois futuros presidentes dos EUA que tiveram papeis de destaque nesse processo, são eles o Richard Nixon (1913–1994), que teve um importante papel na Comissão de Atividades Antiamericanas da Câmara dos Deputados, e cujo mandato presidencial durou entre 1969 e 1974. E Ronald Reagan (1911–2004), que ocupou o cargo durante os anos de 1981 a 1989, e foi aclamado por conta de sua constante luta na censura anticomunista praticada no cinema nacional.

Agora vamos partir para a última etapa da nossa longa jornada, na qual trataremos sobre o anticomunismo no Brasil. Imagino que já esteja cansado, mas estamos na reta final. Se chegou até aqui, não vá desistir agora. Peço que, para melhor compreender a aversão a teoria marxista em nosso país, escute a seguinte música, disponível nesse link: https://www.youtube.com/watch?v=Z4xmRs8OYU4

O nome da canção é O Lobo Mau da Ucrânia, lançada em 1987, no álbum Só se For a Dois, do cantor e compositor Cazuza (1958–1990). A música representa a ameaça comunista no Brasil, dois anos após o do fim da Ditadura Militar, momento delicado da História do país, que teve como uma característica importante a manipulação do terror ao comunismo de modo a legitimar e justificar atitudes tomadas durante o período.

“Meus olhos são bem grandes pra te secar / Minha boca é um bueiro que vai te sugar / E a minha narigona / Te cheira bonitona / Sou o lobo mau que veio da Ucrânia” (Cazuza et. al, 1987)

A aversão ao marxismo será um dos movimentos ideológicos mais importantes da História do Brasil, tendo influência em dois eventos de golpe à democracia no país, o Estado Novo (1937–1946) e a Ditadura Militar (1964–1985). A corrente anticomunista agirá através de meios relacionados à restrição de ações de órgãos adeptos a tal ideologia, assim como a criação e difusão de estereótipos com o intuito de gerar mobilizações contrárias e até constrangimento aos indivíduos taxados com esta alcunha.

Segundo Motta (2002), são vários os utilizadores desse medo ao comunismo: a Igreja — em sua vertente mais tradicional — o Estado, os órgãos de repressão e os grupos e líderes políticos são alguns exemplos. As principais vantagens obtidas a partir da manipulação do anticomunismo são o ganho político, com o aumento de seus eleitores, o apoio popular a medidas governamentais, o aumento do prestígio de instituições que se destacam na luta contra os revolucionários e, em alguns casos, até a extorsão de recursos financeiros com o intuito de ajudar a combater tal ideologia. Isso sem contar a legitimação de regimes autoritários, que ao pregarem a incapacidade do liberalismo democrático em impedir uma possível revolução, incutia no povo, a necessidade de se instaurar um governo ditatorial.

“Quando você deitar, eu já vou tá na cama / O medo do futuro que não te abandona / Pra você o perigo mora em terras distantes / Em livros pendurados na estante […] Minha sede de viver é uma ameaça atômica / E os meios que eu uso, baby, eu nem te conto / Meus ‘is’ não tem ponto / Não peço desculpa / E escrevo “deus” com letra minúscula” (Cazuza et. al, 1987)

A canção retrata muito bem o estereótipo do comunista que “come criancinhas” e conta com o apoio soviético para instauração da revolução no país utilizando-se para tal de meios secretos e subversivos. Isso tudo sem se preocupar com o rastro de mortes que suas atitudes poderão proporcionar, e indo de encontro aos ensinamentos divinos e ao moralismo cristão.

O medo de uma possível revolução proletária com apoio soviético era constantemente alimentado na população, durante os momentos anteriores aos golpes de 1937 e 1964. E depois de instaurado o novo governo, os grupos considerados comunistas eram perseguidos de forma veemente. E para conter o avanço dessa ideologia, era necessária a censura de livros considerados perigosos.

Com relação a qualificação de comunista para indivíduos de pensamentos nada compatíveis com a teoria marxista. Motta (2002) afirma tratar-se de um projeto, utilizado com frequência a partir de 1935, que pretende a divisão do país em dois lados, os anticomunistas e os comunistas, de forma a criar um ambiente hostil, propício à instauração de um regime ditatorial. Para isso, é preciso que o número de adeptos a ideologia marxista seja considerável, logo, realiza-se uma ampliação demasiada no conceito de forma a abranger uma vasta quantidade de pessoas.

É evidente que ao abordar o assunto anticomunismo, não podemos cometer o equívoco de afirmar que todo tipo de difusão e promoção dessa ideologia seja realizada com o fim único da manipulação. O medo existia de fato, e os agentes sociais em muitos casos apenas se utilizavam dele, mas não o criavam. Acerca da verdadeira presença de uma ameaça de revolução comunista no país, é um assunto um tanto quanto complexo para ser abordado nesse texto. É fato que em alguns momentos essa iminência era supervalorizada com o intuito de gerar o caos necessário para favorecer a alguns fins. Mas, apesar do movimento comunista no Brasil nunca ter conseguido uma relevância política considerável e nem uma base de apoio sólida na população em geral, não podemos somente descartar a possibilidade de que para alguns indivíduos esse risco possa parecer realmente incontestável.

Em alguns casos, esse temor é passível de explicação. Como para os liberais, que veem no avanço comunista uma ameaça a propriedade privada e a instauração de um regime ditatorial do proletariado. Assim como para a Igreja, pois na ideologia marxista ortodoxa, esta seria extinta com a implantação do comunismo, já que não seria mais necessária. Logo, é compreensível que para seus adeptos esses ideais representam um risco. Mas o caso da Igreja é um pouco mais complexo, é preciso entender o processo de perda de influência política e social com a Proclamação da República (1889), acarretando na perda de inúmeros fiéis. Então, nesse ponto de vista, o combate ideológico por muitas vezes era utilizado como forma de recuperar seu prestígio social. Além de que em alguns momentos a luta contra o comunismo ganha um teor de luta contra a imoralidade crescente na sociedade. Apesar disso, vale ressaltar que de algumas formas a ideologia marxista exerceu influência no catolicismo. Exemplos disso são a Doutrina Social da Igreja, conjunto de orientações voltadas a discussão de assuntos relacionados a questões sociais; e a corrente teológica da Teologia da Libertação, surgida na América Latina após o Concílio Vaticano II, mas que foi reprimida e perdeu força durante os anos 90.

De acordo com o que fora exposto, podemos perceber como a ideologia marxista teve um papel relevante nos séculos XIX e XX, estando no centro de debates políticos, movimentando grupos e moldando comportamentos. Fica evidente também a importância de uma boa compreensão dos conceitos e termos utilizados na política, pois o emprego incorreto destes, podem representar uma tentativa de manipulação dos indivíduos.

É importante perceber, contudo, que a utilização dessa prática anticomunista em prol de interesses políticos não ficou no passado, muito pelo contrário, nos dias atuais esse é um assunto recorrente em nossa sociedade. Por isso, é necessário que estejamos atentos, e que saibamos distinguir o que há por trás de discursos demagógicos, de forma a evitarmos uma imersão em convicções políticas vazias e mal-intencionadas, que se utilizam do temor de monstros que podem ser apenas frutos de nossa imaginação.

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Everton dos Santos
PET História UFS

Aracajuano. 23 anos. Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe.