O marxismo latino-americano de Mariátegui

Everton dos Santos
PET História UFS
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9 min readAug 24, 2020
Figura 1: José Carlos Mariátegui (1894–1930). Foto: Reprodução. Fonte: panaceiablog.com.br

Quando o assunto é discutir o pensamento marxista na América Latina durante o século XX, é essencial que em algum momento o nome do jornalista e intelectual peruano José Carlos Mariátegui (1894–1930) seja citado. Apesar de ser um nome pouco abordado atualmente na academia, Mariátegui é o autor da primeira análise marxista de uma sociedade latino-americana. Sua obra se destaca pela originalidade ao adaptar uma teoria elaborada num contexto estritamente europeu às particularidades desse continente tão intenso, confuso e desigual, de uma forma completamente heterodoxa. O intuito do texto é apresentar de forma breve e suscinta alguns pontos principais da reflexão mariateguiana no que se refere as possibilidades revolucionárias da sociedade peruana do início dos novecentos, além de discutir a importância de revisitar suas ideias nos dias atuais.

Mariátegui nasceu na cidade de Moquegua, no sul do Peru, e é o segundo filho do casal Francisco Javier Mariátegui y Requejo (1849–1907), funcionário público, membro da aristocracia de Lima, e Maria Amalia La Chira Vallejos (1860–1946), mestiça descendente de família humilde. Ainda em sua infância, o pai abandona a família, que passa por sérios problemas financeiros e têm de se mudar para Huacho devido a frágil saúde do pequeno Mariátegui. Com 8 anos ele sofreu uma grave lesão no joelho esquerdo, deixando-o manco para o resto da vida. Aos 15 começa a trabalhar como auxiliar de tipografia no jornal diário La Prensa. Dois anos depois passa a colaborar periodicamente na redação, com o pseudônimo de Juan Croniquer. Em 1916, por questões políticas, abandona a redação do La Prensa e se torna redator chefe do El Tiempo. No ano de 1918 ingressa de vez na defesa do socialismo fundando a revista Nuestra Época, ao lado de Félix del Valle e César Falcón, assim como o Comitê de Propaganda e Organização Socialista.

Por conta do seu envolvimento com os movimentos populares que insurgiam no Peru durante o governo de Augusto Leguía (1863–1932), Mariátegui é deportado para a Europa em 1919, porém recebendo um auxílio financeiro sob a justificativa de realizar propaganda do país no exterior. Um exílio um tanto quanto brando, mas explicável por dois motivos, o primeiro é que essa foi uma forma encontrada pelo governo de não provocar ainda mais protestos por parte da população, mas também ajudou o fato dele possuir parentesco com a esposa do Leguía.

Durante o período em que passou em solo europeu, manteve uma proximidade com as organizações comunistas de todos os países em que passou. Na Itália conhece sua futura esposa, Ana Chiappe (1898–1990). Lá também entra em contato com as ideias marxistas do Antonio Gramsci, e observa a formação do Partido Comunista da Itália. Além disso, Mariátegui visitou a França, Alemanha, Áustria, Hungria, Checoslováquia e Bélgica. Por questões de saúde não pôde conhecer a Rússia.

Retorna ao Peru em 1923, com suas convicções políticas comunistas ainda mais consolidadas e um maior respaldo no cenário político nacional. Mariátegui passa a ministrar algumas palestras nas Universidades Populares González Prada, convidado pelo político Haya de la Torre (1895–1979), futuro fundador do Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), organização ligada a Internacional Comunista que pretendia implantar o comunismo no Peru, e posteriormente em toda a América Latina. No ano seguinte, novos problemas de saúde fazem com que sua perna direita seja amputada.

Em 1927 irá fundar o editorial Minerva e a revista Amauta, que será interrompida nesse mesmo ano pela forte perseguição aos comunistas comandada pelo ainda presidente Leguía. Mariátegui chega a ser preso por conspirar contra o governo, mas cumpre pena em prisão domiciliar. Nesse mesmo ano lança seu livro La escena contemporânea (1927), em que faz um compilado de uma série de artigos anteriormente publicados em periódicos sobre a política mundial.

Por questões ideológicas, rompe relações com o Haya de la Torre, e colabora com a fundação do Partido Socialista do Peru, optando por não usar o nome comunismo pela aversão que se tinha a tal ideologia no país. É nesse período que Mariátegui irá publicar sua principal obra, Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana (1928), livro peruano de não-ficção mais vendido e com o maior número de traduções. Para muitos o lançamento desse escrito marca o surgimento do marxismo latino-americano. Contudo, de primeiro momento o livro não teve uma boa receptividade em consequência das fortes críticas sofridas por Haya de la Torre e pela Internacional Comunista, já que suas ideias eram incompatíveis com o núcleo marxista mais ortodoxo.

No ano de 1929 co-funda a Confederação Geral de Trabalhadores Peruanos, e continua escrevendo artigos para algumas revistas de cunho comunista. Em 1930, Mariátegui morre precocemente, aos 35 anos, vítima de um tumor ósseo.

Mapa Império Inca. Reprodução. Fonte: pt.wikipedia.org

Antes de adentrarmos em sua obra, é preciso que vos apresente alguns aspectos importantes do maior império entre as altas culturas pré-colombianas, os Incas. Surgido no século XII, os Incas ocuparam boa parte da América Andina, desde uma pequena faixa no sudoeste da Colômbia, passando pelos territórios do Peru, Bolívia, Chile e Argentina.

A estratificação social Inca era composta por três níveis: a Realeza, que era responsável por governar o povo; a Nobreza, grupo de aristocratas cuja função estava relacionada a administração estatal; e o Povo, no qual estava inserida a maior parte da população.

Já a sua organização estatal era assentada numa eficiente rede de informação e fiscalização por parte do Estado. A produção de alimentos, o pagamento de impostos, as novas aldeias conquistadas, a quantidade de súditos, tudo isso era continuamente informado ao soberano através de sua confiável teia de funcionários. Mas a principal característica a permitir o funcionamento dessa estrutura governamental, eram os ayllus, grupos de convivência e ajuda mútua formados a partir das relações de parentesco. O Império Inca era formado por inúmeros agrupamentos desse tipo, todos pagavam impostos e eram comandados por um representante real, chamado de curaca. As relações de trabalho nos ayllus eram baseadas no comunitarismo e numa relação direta com a terra. Não existia propriedade privada, o Estado era o único dono e distribuía a terra conforme a necessidade de cada indivíduo.

Mariátegui vai tratar os povos Incas como uma economia comunista primitiva, apesar de serem uma sociedade estratificada e possuidora de uma organização estatal de certa complexidade. Porém, a terra e as suas ferramentas de exploração eram de posse comunitária, além de que o trabalho era organizado de forma na qual os indivíduos que por algum motivo não podiam produzir sua própria subsistência, o Estado e sua própria ayllu se encarregavam de ajudá-los.

Com relação ao período colonial peruano, Mariátegui afirma que com a devastação da sociedade inca e a consequente destruição de sua estrutura econômica, os europeus irão implantar um modo de produção semifeudal baseada na exploração do trabalho escravo de origem indígena, e posteriormente africana. Umas das especificidades do Peru colonial é a ausência de um projeto colonizador, a maior parte dos europeus vindos a essa região por questões militares ou religiosas. O que acabou promovendo nos séculos posteriores uma povoação composta por uma aristocracia mestiça, constituída por indivíduos de origem não totalmente espanholas. Esse grupo social alcançará a independência peruana através de um pacto com o capital europeu, mas sem levar em consideração as pautas da parcela pobre da população, formada principalmente por um campesinato indígena, explorada por essa própria elite. Isso vai acarretar no surgimento de um capitalismo primitivo peruano já completamente dependente do capital europeu.

No período em que viveu Mariátegui, o Peru trazia fortes marcas do seu período colonial. Sua economia era atrasada e dependente de recursos estrangeiros, baseada na agroexportação latifundiária e com uma industrialização pouco desenvolvida. Além disso sofria com uma grande desigualdade social, numa população formada por uma imensa maioria de camponeses indígenas. Obviamente, todo esse histórico político e social iria refletir no pensamento mariateguiano no que se refere as possibilidades de uma revolução em solo peruano.

No que concerne as estratégias para difusão do comunismo promovido pela Comitern na maior parte dos países da América Latina, em especial o Peru, era necessário que se seguissem as etapas descritas por Marx até a implementação da ditadura do proletariado. Logo, seria indispensável viabilizar uma revolução democrático-burguesa, anti-imperialista e antifeudal, de forma a consolidar as bases do capitalismo com base nacionalista, assim como a formação da classe proletária. E a partir disso o caminho para a instauração de um regime socialista estaria aberto.

Mariátegui via esse processo de outra maneira. Para ele a burguesia peruana era intrinsicamente vinculada ao imperialismo e ao latifúndio, não possuindo identificação com a cultura e história nacional, pois buscam prestígio social imitando os ideais europeus. Portanto, seriam incapazes de lutar contra a estrutura latifundiária que assolava o país por servirem de intermediários dos grandes proprietários de terra para com o capital estrangeiro, também por isso estariam impossibilitados de proporem uma revolução com base tanto nacionalista quanto anti-imperialista. Mariátegui afirma então que somente a revolução socialista estaria apta a desempenhar essa função e ser responsável por efetuar o papel delegado historicamente a revolução burguesa.

Mas quem promoveria uma revolução socialista num país pouco industrializado em que somente uma pequena parte da população pertencia a classe operária? Uma análise da sociedade peruana demonstrava que a classe trabalhadora era indígena na proporção de quatro quintos. O próprio proletariado peruano era formado por uma maioria indígena que ainda mantinha estreita relação com sua comunidade, mas, de fato, a grande maioria do povo nativo era voltado ao trabalho servil nos grandes latifúndios. Logo, Mariátegui observou no campesinato indígena a força motriz da revolução socialista no Peru. Era preciso então despertar essa consciência de classe e “lutar junto aos negros e índios americanos não pela constituição de um estado separado, mas por um governo de operários aliados a camponeses que representassem todas as etnias — de modo a poder emancipar todas elas.” (FONTES, 2017, p. 121)

Na teoria mariateguiana a terra era o principal instrumento da classe trabalhadora que lhes havia sido tirada pelas elites latifundiárias locais. Por isso, a luta revolucionária peruana era uma reconquista do meio de produção essencial a vida do camponês indígena. Em sua teoria, Mariátegui afirma que a decadência dos povos ameríndios é o simples resultado de uma economia que promoveu o processo de expulsão da terra e exploração de sua força de trabalho, rejeita assim qualquer análise sob o ponto de vista moral ou racial, deixando de lado questões étnicas hoje tão amplamente discutidas.

Por conseguinte, a revolução instaurada a partir do teor revolucionário do campesinato indígena deveria ser baseada em um reavivamento das relações de trabalho e posse comunitária da terra presentes na organização social dos ayllus, que permanecia viva nas comunidades indígenas sobreviventes. Mas não se trata de um saudosismo infundado ao suposto comunismo primitivo dessa célula estrutural do império Inca buscando promover uma volta ao passado, mas sim no intento de aumentar as possibilidades de êxito baseando-se na extrema compatibilidade da tradição incaica com as ideias de reforma agrária presentes na obra de Mariátegui. Fazendo assim uma adaptação da cultura comunitária dos ayllus às novas tecnologias e ideais do século XX, formando uma nova sociedade completamente distinta.

Por fim, é evidente que as ideias mariateguianas não foram bem aceitas pela ala marxista ortodoxa. Existe uma intensa discussão sobre uma possível desvinculação de Mariátegui à Internacional Comunista e a União Soviética, assunto amplo e polêmico que não seria viável abordar nessa breve introdução de seu pensamento.

A importância do estudo da teoria de Mariátegui nos dias atuais baseia-se na necessidade de conhecer análises de conjuntura do nosso continente que não se limitem a repetir dogmas e crenças criadas em contextos completamente diferentes do nosso, e que de alguma forma contribuam com a nossa busca por entender e solucionar problemas latentes na contemporaneidade a partir do estudo de um pensamento que se mantém atual por mexer em inúmeras feridas ainda abertas na América Latina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALIL, Gilberto. O marxismo de Mariátegui e a revolução latino-americana: democracia, socialismo e sujeito revolucionário. Anais do II Simpósio Estadual Lutas Sociais na América Latina. Londrina. 2006. Disponível em: <uel.br/grupo-pesquisa/gepal/anais_ii.html> Acesso em: 17 de agosto de 2020.

FONTES, Yuri Martins. Revolução Russa e questão nacional em Mariátegui. Revista Verinotio. Belo Horizonte. n. 23, v. 1, p. 106–125. 2017. Disponível em: < verinotio.org> Acesso em: 17 de agosto de 2020.

LIMA, Luis Eduardo Pina. Aula 6: Zona Andina: O Império dos Incas. In: LIMA, Luis Eduardo Pina. História das Américas I. São Cristóvão: Cesad, 2010. p. 87–103.

MESQUITA, Afonso Mancuso de. ADOUE, Silvia Beatriz. O socialismo indígena de Mariátegui. Revista Espaço Acadêmico. Maringá. n. 133, p. 13–22, 2012. Disponível em: <repositorio.unesp.br/handle/11449/125343> Acesso em: 17 de agosto de 2020.

RUBBO, Deni. QUERIDO, Fábio Mascaro. José Carlos Mariátegui: breve apresentação e cronologia (1894–1930). Revista Lutas Sociais. São Paulo. n. 30, v. 17, p. 58–62, 2013. Disponível em: <revistas.pucsp.br/ls/issue/view/1191/showToc> Acesso em: 17 de agosto de 2020.

URQUIDI, Vivian Grace Fernández-Dávila. Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana na Época dos Estados Plurinacionais. Cadernos Prolam. São Paulo. v. 10, n. 19, p. 169–171, 2011. Disponível em: <revistas.usp.br/prolam/article/view/82486> Acesso em: 17 de agosto de 2020.

REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS

MANOEL, Jones. Introdução ao pensamento de José Carlos Mariátegui. YouTube. 8 de maio de 2020. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=bWLYH2ovqOY&t=3854s> Acesso em: 17 de agosto de 2020.

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Everton dos Santos
PET História UFS

Aracajuano. 23 anos. Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe.