O Poço das Ilusões

Alexandre Firmo
PET História UFS
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5 min readJul 20, 2020

Autores: Alexandre Firmo dos Santos e Mirosmar Bezerra da Costa.

Figura 1 Foto: Reprodução. Fonte: NETFLIX.

O roteiro do filme “O Poço” é desenvolvido em uma prisão que é estruturada de forma horizontal, onde há diversos indivíduos que estão ali por razões diversas, mas não exatamente por questões criminais — embora, nada que possa negar ou descartar essa possibilidade. Nessa prisão, cada cela há dois indivíduos que compartilham o mesmo espaço em um período de 30 dias e cada um tem o direito de levar um objeto que lhe represente valor; como também cabem-lhes optar por uma comida que seja de sua preferência, essa comida é servida de forma horizontal, isto é, todos os insumos básicos são postos sobre uma mesa e como se fosse um elevador vai descendo até a última cela.

A prisão tem vários andares — aproximadamente mais de 300, porém no filme não traz essa informação com exatidão, resultando na falta de alimentação para as pessoas que estão nos andares mais inferiores do poço e, por conseguinte, acaba gerando conflitos entre os próprios internos que não tem o que comer, uma vez que a fome acaba retirando o senso de humanidade no qual desencadeia uma espécie de canibalismo, não aquele cultural, e sim, por necessidade de sobrevivência, instalando-se ali naqueles andares mais baixos um forma de “estado” hobbesiano.

O personagem principal denominado de Goreng se encontra nessa prisão por motivos pessoais, ele quer parar de fumar; pelo menos é o que o mesmo informa em sua entrevista para entrar no presídio. Goreng leva consigo um livro de Dom Quixote para que pudesse passar o período encarcerado lendo. O seu companheiro de cela, no primeiro momento, é Trimagasi que está preso por razões de desequilíbrio psíquico; mas estas razões podem ser enquadradas como motivações criminais. No caso de Trimagasi, ele leva consigo uma faca em que é denominada como “Samurai Plus”, Trimagasi é obcecado por facas.

Nos 30 primeiros dias de detenção eles estão em um nível que a comida ainda chega numa abastança ímpar, dito de outro modo, eles podem escolher o que comer; mas com o passar do tempo eles vão para níveis mais extremos que acabam exigindo deles, porém, Goreng e Trimagasi deveriam se alimentar. Vale lembrar que a mesa quando chegava nos andares mais baixos a comida já não se fazia presente, portanto para eles só restavam as sobras alimentares dos outros internos, isso quando tinham sorte! Porém chegou um momento em que a comida começou a escassear, restando-lhes apenas os seus corpos.

Em um dos momentos do filme Trimagasi está com a “Samurai Plus” e acaba imobilizando Goreng, tenta perfurá-lo, contudo, este personagem consegue escapar; apesar das escoriações e da retaliação que o atinge. Uma outra personagem por nome de Miharu entra nessa cena desferindo golpes de faca em Trimagasi, livrando Goreng da morte, o corpo dele passa a servir de alimento para os dois. Após Goreng comer os restos mortais começa a ter alucinações, pois o espírito do morto perturba-o frequentemente dizendo: “Agora eu faço parte de você, estou dentro de ti”.

No mês seguinte, Goreng passa a compartilhar uma cela com uma ex-funcionária da administração do poço. Ela tem por objetivo ajudar na alimentação das pessoas dos andares inferiores, tentando racionalizar a comida para que todos pudessem se alimentar, ela até tenta fazer isso de forma pacífica, no entanto, ninguém a obedece. Apesar disso, Goreng tem uma atitude mais rude, ele tenta fazer essa racionalização através da imposição, causando insatisfação a sua companheira de cela, posto que esta queria que fosse desenvolvida uma qualidade de “solidariedade espontânea”, na qual se enquadrava em uma forma de utopia proposta pela personagem, mas que foi seguida à risca por Goreng.

Em um dos últimos momentos do filme, Goreng divide o seu andar carcerário com um detendo por nome de Baharat que desejava subir aos primeiros andares do poço no intuito de fugir dali. Ele tenta isso em nome de Deus, ou melhor, sob o argumento de que “Deus tinha lhe dito que duas almas o ajudariam a subir” — estas duas almas seriam outros dois internos que se encontravam em um andar acima do seu, para tanto Baharat tenta persuadir os detentos de cima, mas estes não ficam convencidos do seu argumento e ele, mesmo assim, joga a corda para que os detentos pegassem-na; todavia sem sucesso.

É de grande valia destacar que essa idealização foi um fator importante para o desenrolar do enredo fílmico, a propósito, ela instigou Goreng a colocar em prática aquele propósito de “solidariedade espontânea” a todo custo. Objetivando esse empreendimento ele soma forças com Baharat para concretizá-lo, concomitantemente a este propósito eles também pretendem quebrar com a lógica do sistema do poço. Portanto, estes dois personagens descem até os andares mais inferiores do poço primando pelo objetivo.

Frente a essa utopia precisou-se utilizar da força, comprometendo assim a integridade física dos demais internos em nome da racionalização da comida. “Essa necessidade de um castigo sem suplício é formulada primeiro como um grito do coração ou da natureza indignada […], uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos: sua ‘humanidade’ ” (FOUCAULT, 1987; 95), muitos dos internos que se encontravam enclausurados no poço não tinham os seus direitos totalmente atendidos. Viviam dentro das celas sem todas as condições básicas para permanecer naquele ambiente, todos os dias era uma luta pela sobrevivência na qual se dissipa o senso de humanidade.

A partir do roteiro desse filme pode-se perceber que cada personagem tem uma história diferente para contar, uma mais impressionante do que a outra, portanto essa percepção possibilita compreender para além dela um desejo contido no íntimo dos detentos. Passam dias e meses encarcerados nas celas, em sua maioria insalubres, vários detentos se utilizam da contagem destas unidades temporais para manterem-se atualizados com relação às suas penas — naquelas celas a noção de tempo é roubada dos encarcerados. Os internos visavam enfim ganhar a liberdade ou o certificado homologado que fora prometido.

Nesta análise fílmica constatou-se que boa parte dos detentos entraram nesse “poço” com algum propósito, porém tanto eles como os seus objetivos sucumbiram diante das condições enfrentadas pelos mesmos. Sendo assim, o que lhes restaram foram as ilusões dos propósitos não concretizados, pois o que seria a oportunidade de uma eventual reintegração tornou-se o maior pesadelo na vida destes internos. “O Poço” é um filme destinado para aqueles que se interessam em estudar as situações que envolvem o indivíduo dentro de um sistema penitenciário, sobretudo, as condições em que os detentos são inseridos no presídio. Ademais, é de grande valia para os que objetivam aprofundar-se sobre o funcionamento de um sistema prisional.

Referência

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

O POÇO. Direção de Galder Gaztelu-Urrutia. Espanha: Netflix, 2019. (95 min.), son., color. Legendado.

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Alexandre Firmo
PET História UFS
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Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe.