Resenha do livro “Ideias para adiar o fim do mundo” do escritor Ailton Krenak

Rebeca Leão
PET História UFS
Published in
6 min readSep 7, 2020
Foto: Reprodução. Disponível em: https://www.flip.org.br/noticia/leia-um-trecho-de-ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo/. Acesso em: 30 ago. 2020.

Do Nordeste até o leste de Minas Gerais, onde corre o rio Watu, conhecido por nós como rio Doce e, também, na Amazônia, na fronteira com o Peru e a Bolívia, encontram-se reservas indígenas da etnia Krenak. É a esta família que pertence o jornalista e ativista Ailton Krenak, nascido em 1953, numa região que hoje se encontra em situação de calamidade devido ao rompimento de uma barragem da mineradora Samarco, controlada pela multinacional Vale, em 2015. Por conta disso, foram lançados no rio Doce sedimentos da mineração de ferro que colocou o rio num estado de coma e afetou a vida da população que habitava suas redondezas, incluindo a comunidade Krenak.

Desde a década de 1970, Ailton vem participando de forma ativa do movimento socioambiental e de defesa dos direitos da população indígena. Organizou a Aliança dos Povos da Floresta e contribuiu para a formação da União das Nações Indígenas (UNI), além de sua importante participação para a conquista do “Capítulo dos índios” na Constituição de 1988. Um ano antes, causou grande impacto no plenário do Congresso Nacional, ao fazer um discurso contra o retrocesso na tramitação dos direitos indígenas enquanto pintava seu rosto de preto com pasta de jenipapo.

Ailton Krenak é um comunicador assertivo e sutil, que carrega em suas palavras uma análise crítica à sociedade consumista e autodestrutiva em que vivemos. “Ideais para adiar o fim do mundo” segue à risca o título e estende-se para além de sua última página. Baseado em 2 conferências e 1 entrevista, o livro divide-se em cada uma dessas apresentações. O autor começa relatando sobre a primeira conferência que participou em Portugal, no teatro Maria Matos, chamado “Os involuntários da pátria” onde ocorreu a estreia do documentário “Ailton Krenak e o sonho da pedra”, dirigido por Marco Altberg. A partir daí entramos na discussão acerca da problematização do conceito de humanidade criada pelos brancos europeus e de como esse pensamento fomentou a colonização dessa “humanidade obscurecida” guiando-a para civilização da “humanidade esclarecida” europeia.

O autor nos questiona o porquê de continuarmos insistindo numa sociedade que está fadada ao fracasso desde sua formação e que prosseguimos arquitetando outras iguais a essa pois acreditamos na necessidade da nossa união enquanto seres humanos. “Somos mesmo uma humanidade?”, nos indaga Krenak. E então ele discorre uma crítica às grandes instituições como o Banco Mundial, ONU, OEA, UNESCO que foram concebidas a partir deste conceito de uma única humanidade e que mantém uma postura à serviço dela, na maior parte das vezes tomando atitudes que não são benéficas para todos.

Quando a gente quis criar uma reserva da biosfera em uma região do Brasil, foi preciso justificar para a Unesco por que era importante que o planeta não fosse devorado pela mineração. Para essa instituição, é como se bastasse manter apenas alguns lugares como amostra grátis da Terra. Se sobrevivermos, vamos brigar pelos pedaços de planeta que a gente não comeu, e os nossos netos ou tataranetos — ou os netos de nossos tataranetos — vão poder passear para ver como era a Terra no passado. (KRENAK, 2019, p. 8)

Outro ponto refletido pelo escritor é o conceito de sustentabilidade “inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza” (KRENAK, 2019, p. 9), instigando nós leitores a pensarmos na separação que fazemos entre humanos e meio ambiente, que se difere totalmente das culturas indígenas. “A questão ambiental é inseparável da discussão sobre humanidade — a terra participa do próprio conceito de humanidade. Para os povos indígenas, o que chamamos de meio ambiente é a humanidade.” (GAYOSO, 2020, p. 2). Colocar todos dentro dessa civilização aniquila a diversidade de hábitos e formas de vida. Ailton nos convida a sermos mais críticos a ideia homogênea de humanidade que há muito se perdeu e significa apenas sermos consumidores. Consumimos como forma de terapia, ficamos obcecados em obter sempre mais e ainda ensinamos as nossas gerações futuras a serem clientes. Em prol de manter um modelo de vida de alto consumo e produção, depreciamos o nosso planeta para a construção de shoppings, prédios, separando-nos da nossa própria terra encurtando nosso tempo de existência no planeta. Para além de uma forma de “pensar fora da caixa”, compreender que não somos iguais foi a forma como os indígenas encontraram para sobreviver todos esses tempos.

A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos. (KRENAK, 2019, p. 15)

Desde o período colonial brasileiro, a relação entre invasores e indígenas foi concedida de forma equivocada e quando nos referimos ao período da república, essa relação vem oscilando a cada governo, alguns que exercem o seu papel de proteção a essas comunidade e outros que mostram um verdadeiro descaso frente às inúmeras ameaças que esses povos vêm sofrendo, como é o exemplo do governo que estamos vivendo agora, eleito em 2018. Segundo uma pesquisa realizada pelo INPE, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, entre os meses de janeiro e abril de 2020 o desmatamento em terras indígenas na Amazônia cresceu 64%, equivalente a 1.865 campos de futebol, em comparação ao mesmo período do ano anterior e o governo vem mostrando atitudes contraditórias no enfrentamento ao desmatamento, por exemplo a exoneração de coordenadores do Ibama responsáveis em operações contra crimes ambientais no país. Além de estarmos a um passo de não conseguirmos mais reverter o impacto que esse desmatamento exercerá sob nosso planeta, o desflorestamento é um dos principais motivos da proliferação do COVID-19 nas comunidades indígenas que habitam essa região do país.

Por fim, Ailton nos fala sobre nosso pensamento em relação ao fim do mundo, que nada mais é do que o nosso próprio fim e de como atribuímos ao decorrer do tempo a ideia fixa da Terra e a humanidade, segundo o autor uma das marcas mais profundas do Antropoceno[1]. Essa não seria a primeira vez que nos encontramos próximo do fim, como exemplifica o escritor ao citar o período da Guerra Fria, quando o mundo literalmente se dividiu em dois, e nos convoca a parar de despistar nossa própria queda ao qual, como ele mesmo formula, temos uma certa vocação, sugerindo que ao invés de fugir criemos paraquedas a fim de retardar nossa caída. “Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos.” (KRENAK, 2019, p. 31). Embora fique em aberto o que seria para o autor esses paraquedas e compreendamos o quão árduo é o exercício de não nos deixar adoecer em meio ao caos que vivemos, há ainda inúmeras possibilidades de nos reinventarmos e criarmos aparatos que façam com que a nossa estadia neste lugar chamado Terra, seja mais saudável tanto para nós, quanto para nosso planeta. “Ideias para adiar o fim do mundo” finaliza nos deixando diversos questionamentos e algumas certezas e aproveitando a deixa, também encerro com um trecho do livro, situado na página 33: “Há duzentos anos ansiaram por esse mundo. Um monte de gente decepcionada, pensando: ‘Mas é esse mundo que deixaram pra gente?’. Qual é o mundo que vocês estão agora empacotando para deixar às gerações futuras?”.

[1] Antropoceno é um termo usado por alguns cientistas para descrever o período mais recente na história do Planeta Terra. Ainda não há data de início precisa e oficialmente apontada, mas muitos consideram que começa no final do século XVIII, quando as atividades humanas começaram a ter um impacto global significativo no clima da Terra e no funcionamento dos seus ecossistemas.

REFERÊNCIAS

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 57 p.

GAYOSO, Solange. RESENHA KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Revista Políticas Públicas, Maranhão, v. 24, n. 1, p. 302–305, 30 ago. 2020.

ÍNDIO CIDADÃO? — Grito 3 Ailton Krenak. Destrito Federal: 7G Documenta e Machado Filmes, 2014. Son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kWMHiwdbM_Q. Acesso em: 30 ago. 2020.

DESMATAMENTO e Covid-19 explodem em Terras Indígenas mais invadidas da Amazônia. 2020. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/desmatamento-e-covid-19-explodem-em-terras-indigenas-mais-invadidas-da-amazonia. Acesso em: 02 set. 2020.

DESMATAMENTO em terras indígenas aumenta 64% nos primeiros meses de 2020. 2020. Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/desmatamento-em-terras-indigenas-aumenta-64-nos-primeiros-meses-de-2020/#:~:text=Uma%20an%C3%A1lise%20dos%20dados%20do,%C3%ADndice%20dos%20%C3%BAltimos%20quatro%20anos.. Acesso em: 02 set. 2020.

GOVERNO exonera chefes de fiscalização do Ibama após operações contra garimpos ilegais. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/04/30/governo-exonera-chefes-de-fiscalizacao-do-ibama-apos-operacoes-contra-garimpos-ilegais.ghtml. Acesso em: 02 set. 2020.

ANTROPOCENO. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Antropoceno. Acesso em: 02 set. 2020.

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Grupo composto por alunos da licenciatura em História, integrantes do Programa de Educação Tutorial (PET) de História pela Universidade Federal de Sergipe.