“O Conto da Aia”: A opressão em nome de Deus

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6 min readSep 28, 2020

Por Camila Barbosa

Uma distopia envolvente e arrepiante. Como seria um governo inspirado nas leis de Deus?

Capa do livro “O conto da Aia”, de Margaret Atwood. O romance é uma ficção especulativa onde o menstruar é um grande pecado

Liberdade. Escolha. Direitos. Mulher. Palavras que não andam juntas ao longo da narrativa de “O conto da Aia”, romance distópico de Margaret Atwood. Lançado em 1985, a obra da escritora canadense narra a história de Offred, uma mulher que perdeu tudo e tenta resistir ao autoritarismo que dominou seu país, um estado teocrático — governado de acordo com preceitos religiosos, que já foi conhecido como Estados Unidos da América.

Gilead surgiu após uma série de atentados terroristas orquestrados por uma seita religiosa ultraconservadora denominada “Filhos de Jacó” que matou o Presidente e a maioria dos parlamentares dos Estados Unidos, abalando as bases de sua democracia. Após o golpe de estado veio a implantação de um regime autoritário fundamentado no Antigo Testamento da Bíblia Cristã com o nome de República de Gilead. Todos os cidadãos perderam seus direitos, no entanto, as mulheres foram as maiores vítimas do novo normal que surgia nos Estados Unidos.

A sociedade de Gilead é dividida em castas onde cada uma tem sua função bem definida. Além da divisão por nível social elas são divididas por gênero onde o homem é sempre mais importante que a mulher. A casta mais importante é a dos Comandantes, os Filhos de Jacó, que governam o regime autoritário.

Entre as mulheres a divisão é feita por níveis sociais: a casta mais importante é a das Tias, as únicas mulheres que possuem algum tipo de poder em Gilead; as esposas são mulheres da alta sociedade e que participaram da fundação da República, sua única função são de serem esposas dos comandantes e cuidar da família; as Martas são responsáveis pelos serviços domésticos; as Aias são mulheres férteis — propriedades do estado, que na vida pregressa a Gilead tiveram algum tipo de comportamento considerado pecado e ameaçadores à moral e aos bons costumes como aborto, casos extras conjugais, relações homoafetivas etc., elas são apontadas como pecadoras e para reparem seus pecados diante de Deus são obrigadas a prestarem serviços para o Estado como procriadoras; as não-mulheres, são mulheres que não podem mais ter filhos e eram lésbicas, feministas, cometeram algum crime etc., e que podem causar desordem na sociedade de Gilead e são mandadas para campos de trabalhos forçados sob condições degradantes.

A narrativa se desenvolve a partir de Offred, uma aia, e de suas memórias anteriores à revolução e de seus relatos do presente, levando o leitor a conhecer a República de Gilead por dentro, nos mais altos escalões de poder do país. Toda a política de estado dessa nação se desenvolve em torno da religião e da procriação. A narrativa se passa em futuro em que após eventos catastróficos com energia nuclear, aumento da poluição, degradação do meio ambiente, piora das condições climáticas, a saúde humana é afetada e os índices de esterilidade são altos, diminuindo, portanto, a taxa de natalidade.

Para os Filhos de Jacó as mulheres são as responsáveis pela baixa taxa de natalidade do país por se dedicarem a carreiras profissionais, pela decisão de não terem filhos ou por causa de suas sexualidades, e uma sociedade em que as mulheres têm liberdade de deliberar sobre seus corpos e não dão prioridades as suas funções biológicas precisa ser consertada. As leis sob as quais Gilead é governado são inspiradas e frutos de uma interpretação ultra extremista do Antigo Testamento, e em defesa dos bons costumes e do nome de Deus os Filhos de Jacó as levam ao extremo.

Partindo da história da narradora conhecemos como os Estados Unidos caíram e Gilead se levantou. O apoio inicial dos cidadãos, ao totalitarismo que tomava conta do pais, quando aquilo que lhes incomodava foi retirado de circulação, como as casas de prostituição, pois não havia motivos para desespero, afinal, era um mal necessário, ninguém queria se misturar com prostitutas ou miseráveis; até que veio a supressão dos direitos das mulheres de terem bens e emprego, era somente questão de segurança não havia motivos para preocupação, seria temporário.

“(…)Mas vivíamos como de costume. Todo mundo vive, a maior parte do tempo. Qualquer coisa que esteja acontecendo é de costume. Mesmo isto é de costume, agora.

Vivíamos, como de costume, por ignorar. Ignorar não é a mesma coisa que ignorância, você tem de se esforçar para fazê-lo.

Nada muda instantaneamente: numa banheira que se aquece gradualmente você seria fervida até a morte antes de se dar conta. (“…)”

A casa na qual Fred presta seus serviços à República, para dar um filho ao Comandante e sua Esposa, serve como uma representação de toda a sociedade de Gilead e mostra ao leitor como na prática e longes dos relatos oficiais do governo funciona a estrutura de poder. Até mesmo os homens e mulheres de bens, defensores da honra de Deus, estão dispostos a burlarem suas próprias regras sagradas, como manter uma rede de privilégios clandestina onde possam satisfazer seus desejos mundanos: as mulheres com objetos proibidos, como cigarros e cosméticos; os homens com comportamentos proibidos como relações extraconjugais e visitas a bordeis. Nos bastidores de Gilead, Offred mostra ao leitor que é difícil ser santo, até mesmo para os mais dedicados. Entre as palavras Sagradas e a prática há o homem e seus interesses.

Aos poucos percebe-se que apesar de utilizarem Deus como justificativa para seus atos e atrocidades os governantes de Gilead estão bem longe Dele. Que no fundo tudo o que os conservadores e religiosos condenam e dizem lutar contra é o que mantém seus modos de vida. Apesar de Deus ser citado em qualquer parte da república ele foi esquecido há bastante tempo.

Distopia, segundo o Dicionário Online de Português, significa “o lugar hipotético onde se vive sob sistemas opressores, autoritários, de privação, perda ou desespero; antiutopia”, e é exatamente isto que se encontra em cada virar de página de “O conto da Aia”. Pelos dos relatos de Offred, conhecemos a história e o funcionamento desse país onde mulheres são tão somente objetos: de reprodução, de exploração, de exibição. Embora esse tipo de obra seja ficção, ou como o define sua autora “literatura especulativa”, ela serve para nos fazer refletir sobre a sociedade que temos e a sociedade que queremos. E, sobretudo, ficar alerta aos sinais e combatê-los para que não venham a ser reproduzidos mesmo que minimamente.

Com uma leitura fluida, “O conto da Aia” prende o leitor página após página. embora tire a tranquilidade às vezes, é um livro que não dá para largar pela metade. A obra tem adaptações para o cinema, o teatro e para o streaming, em uma série premiada de mesmo nome do livro.

SOBRE A AUTORA

Margaret Eleanor Atwood, escritora, romancista, poetisa, contista, ensaísta e crítica literária, nasceu na cidade canadense de Ottawa, em 1939. Graduou-se em Artes na Universidade de Toronto e foi professora de Literatura Inglesa em várias universidades canadenses. É uma das escritoras mais admiradas mundialmente. Recebeu diversos prêmios, como o Man Booker Prize de 2000 por O Assassino cego, Chevalier de l’Ordre dês Arts e dês Lettres e o Príncipe de Astúrias de 2008 pelo conjunto de sua obra, entre outros. Seus livros foram traduzidos para mais de trinta idiomas.

FICHA TÉCNICA

Ano: 2017
Número de Páginas: 368
Editora: Rocco; 1ª Edição (sete junho 2017).
Idioma: Português
Autor: Atwood, Margaret

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