O racismo discutido em Watchmen

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5 min readOct 9, 2020

Por: Gabriela Brasil

Dando sequência ao mundo dos quadrinhos, a minissérie Watchmen trouxe, após 34 anos dos acontecimentos da história original, aos tempos atuais, alguns personagens já conhecidos e outros novos personagens. Na versão dos quadrinhos, o contexto era outro, época de Guerra Fria, em clima de uma guerra nuclear. Os escritores Alan Moore e Dave Gibbons escreveram a história em quadrinhos (HQ) com a intensão de criarem super heróis com qualidades e defeitos de pessoas normais. Mascarados que precisavam lidar com as questões do mundo real, satirizando a imagem dos famosos super heróis que surgiram na década de 20 por serem ultra idealizados com pouca complexidade em relação a sua moralidade, pois seguiam uma rigidez ética que condicionava em ações polidas e benevolentes, irrealistas e previsíveis.

Cenas da minissérie Watchmen e da HQ

A série não é uma readaptação da obra original, como a produção cinematográfica de 2009 do diretor Zack Snyder, que se empenhou em reproduzir para as telas do cinema toda a história das edições dos quadrinhos. Já a minissérie, criada pelo roteirista e produtor Damon Lindelof para a HBO, introduz novos conflitos que se passam na cidade de Tulsa, em 2019. A continuação trouxe novos personagens, tão interessantes quanto o núcleo original, esse apresentando agora com mais idade, porém com algumas características preservadas, e até mesmo, mais excêntricas como o Ozymandias/ Adrian Veidt.

Watchmen consegue dar continuidade àquele cenário dos anos 80, trazendo novas questões que não são tão novas assim. O racismo aparece nos primeiros minutos da série, com cenas extremamente fortes envolvendo um massacre contra os habitantes negros da cidade de Tulsa, no início dos anos 1920. Ao primeiro olhar, a representação da covardia e atrocidades que são cometidas pelos invasores brancos nos desperta um sentimento de negação por ser uma obra ficcional. Entretanto, esse ataque contra a população negra aconteceu de verdade, considerado como o maior conflito racista da história dos Estados Unidos, o Massacre de Black Wall Street, matou cerca de 300 pessoas negras nos dias 31 de maio e 1° de junho.

Além disso, a ascensão de grupos extremistas e supremacistas brancos com ideais reacionários, cometendo assassinatos e terrorismo se assemelha muito ao cenário atual do turbulento ano de 2020. A série foi lançada ano passado, mas ela trabalha com questões sociais de tal modo que se pode dizer profético por apresentar conflitos semelhantes aos que se agonizam na vida real. Esses tão agonizantes ao ponto de surgirem grandes movimentos como o Black Live Matter nos Estados Unidos após a morte de George Floyd, homem negro, assassinado por um policial branco que pressionou seu pescoço contra o chão até seu falecimento.

Cena da minissérie Wacthmen

É dito profético, porém não é, considerando a violência massiva contra a população negra que somente tem se intensificado nos últimos anos, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. A total repressão também é notória quando olhamos os números da população carcerária dos dois países. No Brasil, 64% do total dos encarcerados são negros, de acordo com os levantamentos mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Já nos EUA, estudos realizados pela Prison Studies, em 2016, mostram que para cada cinco homens negros encarcerados há um homem branco.

Porém, não se deve cair no racismo ao assimilar que a população negra é naturalmente violenta e propensa ao crime, como foi dito pela ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel em suas redes sociais. É uma falácia racista, pois é preciso analisar que há uma seleção jurídica historicamente determinada, que pune e persegue a população negra tanto na época da escravidão quanto pós. A socióloga e conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Thandara Santos, argumenta que “a sobrerrepresentação não necessariamente é a maior ocorrência de crimes nessa população. Está ligado a um sistema de supervigilância dessa população negra” e complementa “a premissa é racista e rasa. Temos um histórico de construção criminal contra pessoas negras da abolição. Ali, temos um direcionamento de como lidar com negros de forma judicial”.

Os dados comprovam o que Thandara disse. De acordo com a dissertação de mestrado em ciência política, intitulado: Análise dos processos penais de furto e roubo na comarca de São Paulo, demonstra que os casos de furtos praticados na cidade de São Paulo em sua maioria são cometidos por pessoas brancas, cerca de 59,5% delas são réus, enquanto os outros 40,1% são por pessoas negras. Há também o caso recente de uma juíza de Curitiba que condenou o réu pela sua cor de pele, pois, de acordo com seu julgamento, sua raça seria um forte indicio pelo crime cometido.

A minissérie Watchmen, que possui apenas nove episódios, nos reapresenta personagens que antes, para quem já teve contato tanto com as HQs quanto com o filme, despertavam curiosidade, instigação e desconfiança e até mesmo carisma, afinal, eram personagens com muitas camadas e que, agora mais velhos, ainda sim nos trazem isso. Além disso, incluíram novos, como a protagonista Ângela Abar, também conhecida como Sister Nigth, mulher negra, forte, com uma história de muita dor e traumas e, ao mesmo tempo, extremamente cativante. Com certeza Sister Nigth formará uma geração de meninas que se inspirarão na heroína. Além também de outros personagens que dão peso na história, como Looking Glass, Will Reeves e Lady Trieu.

Foto: Site Adorocinema

Contudo, apesar de conter na minissérie não somente personagens excelentes, fotografia e efeitos especiais impecáveis, vale ressaltar o implacável roteiro crítico e assertivo que tornou a minissérie muito mais que uma história de super herói. Isso porque ela reflete o que estamos vivendo hoje, nos mostra que os problemas e as crises não surgiram há pouco tempo. Que existem grupos muito bem articulados e organizados, e que caso não haja algum contrapeso, poderão, então, irromper consequências inexoráveis.

Para os que não estão familiarizados com esse universo de heróis, mesmo assim conseguirão imergir na narrativa; não necessariamente ela necessita de uma prévia sobre as histórias anteriores para ser compreendida. Para os fãs, ela está recheada de easter eggs e referências dos quadrinhos.

Não causa espanto, então, a minissérie ter levado tantos prêmios no Emmy Awards 2020, premiação anual realizada pela Academia de Artes e Ciências Televisivas dos EUA. Foi indicada para 26 categorias, ganhando 11, sendo os prêmios principais levados pela minissérie: melhor roteiro para minissérie ou filme para TV; melhor atriz em minissérie ou filme para TV, pela atriz Regina King; melhor ator coadjuvante em minissérie ou filme para a TV para Yahya Abdul-Mateen; e melhor minissérie.

Assim, Watchmen se sobressai como uma importante produção audiovisual, que consegue construir um mundo com elementos que cercam a vida real, e ao mesmo tempo fundir com o mundo dos super heróis sem idealizações. Ela debate questões e problemas atuais como o racismo, destrinchando momentos históricos que antes ficavam apagados por meio de personagens ricos e bem desenvolvidos e por meio de uma narrativa que, o tempo todo, nos instiga a querer saber mais sobre todos os aspectos que rodeiam esses sujeitos que vivem em Tulsa.

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