As mulheres que têm o brilho da lua

Redação para Mídias Digitais
Pici Cultural
Published in
9 min readJun 2, 2019

Entre a população fortalezense, pouco se sabe sobre a comunidade do Planalto Pici. Ela sofre os efeitos do que Chimamanda Adichie, uma famosa escritora nigeriana, chama de “Única História”. Segundo ela, formar a imagem de um indivíduo ou de um local a partir de um único ponto de vista é algo que pode ser bastante prejudicial. Excluem-se tradições, ideias, histórias, relações e, claramente, pessoas. Tanto se perde e nada se ganha quando não nos dispomos a enxergar além dos nossos muros.

Nós produzimos esta publicação numa tentativa — esperançosa, diga-se de passagem — de resgatar as histórias das pessoas que vivem na comunidade e compartilhar as suas experiências, aprendizados e emoções com a sociedade, cujos olhos estão, por vezes, fechados para tanta beleza e diversidade que existe na nossa cidade e no nosso país.

Um dos vários grupos existentes (e resistentes) no Planalto Pici é o grupo das Mulheres de Todas as Cores que têm o Brilho da Lua, o qual nós tivemos o prazer de conhecer e visitar as integrantes e que agora temos o desafio de contar as suas histórias. Mas, antes disso, é preciso compreender o contexto do local onde o grupo se encontra.

O Planalto Pici

O Planalto Pici ou simplesmente Pici é um bairro conhecido por abrigar o Campus do Pici, um dos campi da Universidade Federal do Ceará. Essa proximidade com o meio acadêmico deveria ser motivo para que todo estudante da área conhecesse a realidade e a história do local, o que, no entanto, não é verdade.

Historicamente existem várias versões sobre o nome do bairro, mas a verdadeira versão, contada pelos moradores, é a de que o nome do bairro está ligado ao antigo “Sítio Pecy”, de propriedade da família Braga e assim nomeado em homenagem à obra “O Guarani”, de José de Alencar, cujos personagens principais eram Peri e Ceci.

O bairro apresenta um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,218 ocupando a centésima posição de cento e dezenove bairros. Além disso, ele já abrigou uma base aérea americana durante a II Guerra Mundial, mas não se limita a isso. O Pici é resistência, é continuidade de uma cultura e é, acima de tudo: luta.

É curioso pensar que o que divide a Universidade Federal do Ceará e a comunidade do Planalto Pici é unicamente um pequeno muro de pouco mais de dois metros de altura. No entanto, esse muro carrega em sua estrutura, já desgastada pelo tempo, muito mais do que apenas armação e concreto. A construção também representa uma fronteira, invisível aos olhos, porém muito perceptível no cotidiano, principalmente daqueles que vivem na comunidade.

Portanto, cada vez que atravessamos o muro para encontrarmos as mulheres do grupo em sua sede, trouxemos conosco a responsabilidade de também atravessar aquela fronteira simbólica e contribuir para a queda desse muro tão intangível, mas igualmente real. Nós esperamos que este trabalho seja útil para retirar, mesmo que pouco, um pedaço do concreto.

As Mulheres do Brilho da Lua

Por volta dos anos 1990 e 1991, com o início das ações de assistência social no bairro para criar uma infraestrutura de saneamento básico, se iniciaram as reuniões de mulheres, que no futuro ficariam conhecidas como o Grupo de Mulheres do Brilho da Lua. O primeiro objetivo da formação do grupo era discutir sobre a saúde e higiene das suas famílias e dos demais moradores. Elas se reuniam para trocar saberes diversos, entre eles, a medicina alternativa que ajudava a curar doenças que eram muito frequentes nos moradores, graças à falta de saneamento básico no local. Surgiu então o Horto de Plantas Medicinais, onde as mulheres se encontravam e aprendiam sobre infusões e compartilhavam suas sabedorias sobre ervas e outros recursos naturais. Além disso, havia uma preocupação das mães em obter informações sobre sexualidade para acompanhar e ajudar seus filhos e, principalmente, suas filhas adolescentes.

A religião também estava fortemente presente entre elas e o resto da comunidade. A necessidade de realizar as celebrações eucarísticas motivou bastante a apropriação de um local em que esses eventos, bem como os encontros das mulheres, pudessem ser realizados, pois antes aconteciam na rua, geralmente em frente à casa de alguma delas. Assim, organizou-se um mutirão para construírem o salão onde o grupo persiste até hoje. Com o aumento das atividades e do interesse dos moradores pelas celebrações religiosas, os espaço foi ficando pequeno para acomodar todos, então as mulheres se mobilizaram e obtiveram mais uma conquista: a construção de uma capela ao lado do horto, chamada Capela São Francisco, que ainda está em pleno funcionamento.

Conversa com algumas integrantes da formação original do grupo.

Nas nossas conversas, tivemos a oportunidade de conhecer algumas ex-integrantes que fizeram parte da formação original, como a Dona Marina, Dona Lêda, Dona Hermínia, Dona Nenê, Dona Valmira, Dona Carmosa, Dona Lúcia Cavalcante e Dona Francisca (Cisquinha), sendo as três últimas integrantes ainda ativas no grupo. Fizeram questão de relembrar com ânimo os momentos que viveram juntas, mencionando Dona Marina que, não importasse a ocasião, sempre preparava um farto banquete para todos os presentes e, até hoje, gosta de uma boa festa. Dona Valmira parece que tem na cabeça um livro de receitas decorado por inteiro, ela sabe para quê serve e como fazer quase todo tipo de remédio. Dona Lúcia e Dona Francisca conhecem a história inteira do grupo e podem descrevê-la com detalhes.

Com um diálogo descontraído e saudoso, elas nos contaram suas experiências, memórias e, claro, compartilharam as receitas que aprenderam na época que frequentavam o horto e ao longo de suas vidas. Agora, nós queremos passar à frente esse conhecimento e também apresentar-lhes cada uma dessas mulheres incríveis que contribuíram para o desenvolvimento de uma comunidade mais saudável e consciente.

Para isso, nós revitalizamos uma cartilha feita por elas que mostra algumas receitas e indicações de plantas naturais para curar vários tipos de doenças e sintomas. Vale destacar que esta é uma versão resumida. A cartilha de verdade é extensa. Além disso, no final deste texto você encontrará uma playlist com os vídeos das entrevistas que fizemos com várias mulheres, tanto da formação original quanto da atual.

Cartilha Piloto — Medicina Natural

As Mulheres de Todas as Cores

Com o passar dos anos, a movimentação do grupo e de suas integrantes foi aumentando e, em meio a idas e vindas, as atividades foram sendo conhecidas por pessoas de comunidades vizinhas como Feijão, Fumaça, Inferninho e outras. Assim, em meados dos anos 2010, havia mulheres de diversas comunidades no grupo, envolvidas por objetivos e interesses em comum.

Inicialmente conhecido como Mulheres da Entrada da Lua, devido ao local de encontro ficar perto de um muro com o desenho de uma lua, o grupo sofreu algumas modificações no seu nome devido ao fato deste originar de uma região conhecida como Entrada da Lua, até chegar à versão atualmente conhecida. Numa realidade onde vizinhos têm receio de atravessar para comunidades vizinhas, algumas mulheres não se sentiam confortáveis de usar esse nome referente à uma só comunidade. Decidiu-se então por criar um nome neutro, sem referências diretas às comunidades. Foi quando Dona Lúcia Cavalcante chegou à ideia de chamá-lo Mulheres de Todas as Cores, visando uma imagem mais plural, que agradasse e representasse todas as mulheres participantes. Contudo, por ter muito apego ao nome da Entrada da Lua, finalmente batizou o grupo, portanto, de Mulheres de Todas as Cores que têm o Brilho da Lua. Dona Lúcia não queria se desfazer da referência à lua que, além de brilhar e iluminar os caminhos, é um símbolo do feminino, da força e sabedoria da mulher.

Apesar de nunca terem deixado de se dedicar à medicina natural e bem-estar, outras práticas tomaram espaço nas atividades do grupo, sendo o artesanato a principal e mais presente. As mulheres agora dividiam mais um interesse: produzir peças artesanais dos mais diversos tipos, como bolsas, colchas, pesos de porta, bonecas e muitos outros. O importante é que todas tinham algum talento para compartilhar.

A preocupação com o aspecto de políticas sociais do projeto também aumentou e, com isso, veio a necessidade de uma produção mais organizada e consciente. Foi quando inseriu-se a Economia Solidária na rotina de trabalho do grupo.

A economia solidária é uma alternativa inovadora na geração de trabalho e na inclusão social, na forma de uma corrente do bem que integra quem produz, quem vende, quem troca e quem compra. Seus princípios são autogestão, democracia, solidariedade, cooperação, respeito à natureza, comércio justo e consumo solidário. [1]

As mulheres que vendiam seus artigos se organizavam em feiras em locais públicos, geralmente nos terminais rodoviários de Fortaleza. Contudo, um requisito para o bom funcionamento da Economia Solidária é que haja uma diversificação nos produtos oferecidos pelos grupos, para que não se estimule a competição pelo lucro. Dessa forma, as Mulheres de Todas as Cores decidiram por ter as bonecas de pano como carro-chefe dos seus trabalhos. A partir daí, o engajamento na produção artesanal e também no empreendedorismo foi crescendo.

Vale lembrar que essas feiras ainda acontecem no terminal do Siqueira, que é onde elas estão com mais frequência.

Hoje, as integrantes do grupo participam de oficinas de letramento digital, um projeto de extensão da UFC junto à comunidade do Planalto Pici. Nessas oficinas elas aprendem a manipular planilhas, utilizar as redes sociais, os aparelhos celulares e também a fotografar os seus produtos. Essa parceria acontece desde 2017 e só tem evoluído desde então.

Além de servir como uma segunda fonte de renda para algumas, é unânime entre elas o pensamento de que o grupo serve, acima de tudo, como um local de afeto, amizade e sororidade. Nós conversamos com Lúcia de Fátima, Quitéria, Maria Iraci, Eliane, Francisca, Dona Lúcia Cavalcante e Dona Cisquinha. Todas afirmam que participam dos encontros principalmente porque sentem-se bem e gostam de estar próximas umas às outras. Destacaram, inclusive, que funciona como uma forma de terapia, onde compartilham acontecimentos das suas vidas, se ajudam e, principalmente, são acolhidas emocionalmente. É impossível não perceber o carinho que elas têm pelo grupo e pelas amigas.

Outra característica relevante é o enfoque na formação de gênero e na linha feminista. Dona Lúcia Cavalcante, que é quem promove as discussões mais ligadas às questões políticas, fala sobre a importância que se tem de tornar a mulher mais consciente quanto à sua posição na sociedade, à sua liberdade e emancipação financeira. Dessa forma, as mulheres do grupo estão sempre desenvolvendo seus talentos e se encorajando a conquistarem seus espaços na comunidade e além dela.

Onde encontrá-las

As Mulheres de Todas as Cores que têm o Brilho da Lua possuem uma página no Facebook: https://www.facebook.com/mulheresbrilhodalua/, lá você pode conhecer um pouco mais sobre a história do grupo.

O salão está localizado no endereço Rua Entrada da Lua, 256 — Pici — Fortaleza, Ceará. Elas também estão nas feiras dos terminais rodoviários vendendo seus produtos.

Entrevistas

Playlist com todos os vídeos de entrevistas com as Mulheres de Todas as Cores e que têm o Brilho da Lua

Mais algumas fotos das nossas visitas

1. Dona Marina declamando uma poesia

Referências

  1. Prefeitura Municipal de Curitiba. Economia solidária em Curitiba. s.d.

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Redação para Mídias Digitais
Pici Cultural

Perfil da turma da disciplina de Redação para Mídias Digitais 2019.1 do curso de Sistemas e Mídias Digitais da UFC.