O Brilho da Tradição — A Estrela TonGil

Redação para Mídias Digitais
Pici Cultural
Published in
8 min readJun 2, 2019

Foi numa noite igual a esta

Que tu me deste o coração

O céu estava assim em festa

Pois era noite de São João

Paul Oliver, no verbete “Tradição e transmissão” da Encyclopedia of vernacular architecture, enuncia que se consideram tradicionais “aqueles aspectos do comportamento, dos costumes, do ritual ou do uso de artefatos que foram herdados das gerações anteriores”. É de tradição que se trata esta escrita:

A época dos festejos de Junho é um tempo cheio de festas, alegrias, uma cultura que pulsa nas veias dos brincantes e que já é tradição desde antes da era cristã.

As festas juninas homenageiam três santos católicos: Santo Antônio (no dia 13 de junho), São João Batista (dia 24) e São Pedro (dia 29). No entanto, a origem desses festejos não está ligada ao cristianismo. No hemisfério norte, várias celebrações pagãs aconteciam durante o solstício de verão. Esse fenômeno astronômico marca o dia mais longo e a noite mais curta do ano, o que ocorre nos dias 21 ou 22 de junho. Diversos povos da Antiguidade, como os celtas e os egípcios, aproveitavam a ocasião para organizar rituais em que pediam fartura nas colheitas. “Na Europa, os cultos à fertilidade em junho foram reproduzidos até por volta do século X. Como a igreja não conseguia combatê-los, decidiu cristianizá-los, instituindo dias de homenagens aos três santos no mesmo mês”, diz a antropóloga Lucia Helena Rangel, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Com a chegada dos jesuítas portugueses, os costumes indígenas de festejar as colheitas e o caráter religioso dos festejos juninos se fundiram. É por isso que as festas tanto celebram santos católicos como oferecem uma variedade de pratos feitos com alimentos típicos dos nativos. Já a valorização da vida caipira nessas comemorações reflete a organização da sociedade brasileira até meados do século XX, quando 70% da população vivia no campo.

Sabendo disso, é interessante trazer à tona o fenômeno que as festas juninas se tornaram. Comidas típicas, danças características, rituais e superstições que foram sendo criadas a partir dos santos homenageados etc.

Uma das tradições mais apreciadas pelo público das festas juninas são as apresentações de quadrilha — que tem origem francesa, nas contradanças de salão do século XVII, nas quais em pares, os dançarinos seguiam uma coreografia de movimentos alegres. A quadrilha chegou ao Brasil no século 19, trazido pelos nobres portugueses, e foi sendo adaptado até fazer sucesso nas festas juninas.

Para nos aproximarmos ainda mais desses festejos, decidimos contar a história da Quadrilha Tongil, que se localiza no bairro Planalto Pici.

Para melhor entender a história por trás da Tongil, é imprescindível conhecer a trajetória de um dos seus donos e fundador da quadrilha, o senhor Gilmá. A história dele começa quando ainda era pequeno em Iguatu. Seu avô era apaixonado por quadrilhas e sempre contava a ele sobre as festas que participava.

Não existiam quadrilhas em Iguatu, por isso quando conseguia visitar Fortaleza, era o primeiro a chegar para assistir às festas. Anos mais tarde, ainda jovem e já morando no planalto, Gilmá decidiu aproveitar alguns materiais que tinha em casa e brincar de quadrilha com algumas crianças do bairro. No dia seguinte, havia um grupo ainda maior de crianças que foram até a casa dele para brincar de quadrilha.

Sendo assim, ele e seu amigo, Antônio, decidiram fazer a quadrilha com o nome provisório de Tongil (Ton de Antônio e gil de Gilmá). No quarto ano de quadrilha, após um grupo se sentar para pensar num novo nome para a quadrilha, poucas ideias surgiram e acabaram decidindo ficar com o nome que já estavam acostumados.

Após algum tempo, Antônio se afastou da quadrilha por uma discussão familiar. No entanto, para a alegria dos brincantes, o Gilmá pediu para continuar com a quadrilha e assim, ele começou a encabeçar sozinho o projeto.

Como quase todo projeto que começa sem uma injeção de dinheiro considerável, a parte monetária é um dos maiores problemas para a Tongil. Todos os anos, a quadrilha conta em média com 20 casais — esse ano, 2019, serão 16 casais — e alguns não têm condição de pagar pelas fantasias, que custam, em média, 800 reais. Dessa forma, é necessário o auxílio por parte dos integrantes que têm maiores condições de ajudar nas despesas necessárias.

Existe uma ajuda de custo que começou em meados dos anos 2000 e que, na época, era no valor de 300 reais mas que hoje pode chegar a casa de alguns milhares. Vale lembrar que, por questões de aprovação de edital, não é todo ano que eles recebem esse aparato financeiro.

Um dos pontos que impressionam na história da Tongil é a garra dos brincantes em conseguir realizar as apresentações ano após ano. Mesmo sem um lugar próprio para realizarem os ensaios, eles costumam treinar na escola próxima a sede, mas também utilizam uma quadra na frente da casa do Gilmá, que fica na praça com o nome da escola: Praça Tongil. Essa é uma das conquistas da quadrilha, ter sua importância reconhecida a ponto de receberem uma homenagem da prefeitura, o que auxiliou moradores e brincantes com um centro que oferecia um espaço de lazer, recreação e entretenimento.

Como já havíamos citado, o senhor Gilmá tem uma dificuldade para manter a quadrilha. Porém, uma das coisas que o fazem continuar com o projeto é a parte que diz respeito aos valores somados dentro do grupo, o ganho de senso de comunidade recebido por jovens, fazendo-os participar coletivamente de um projeto, além de proporcionar e treinar habilidades que eles podem levar para outros espaços sociais. Durante o período de preparação há costura, coreografia, maquiagem, atuação, várias etapas que exigem tempo e dedicação, permitindo que a quadrilha se insira na rotina do jovem, tirando-o da rua e das possíveis más influências.

Além disso, existe também o ganho de habilidades sociais, como a capacidade de falar em público. Há muitos jovens que chegam extremamente tímidos e com o passar do tempo, se mostram mais desenvoltos a ponto de, como no caso do Douglas, sobrinho dele, começar a organizar a própria quadrilha na escola, algo que lhe parecia improvável alguns anos antes.

O próprio Gilmá conta que essa desenvoltura adquirida durante os anos de Tongil o ajudaram profissionalmente. Durante uma festa de final de ano, ele tomou coragem para dizer algumas palavras para os funcionários e o dono ficou tão impressionado com a desenvoltura, que acabou lhe dando uma promoção para um cargo de gerenciamento de pessoas por isso.

Ele também pontua o valor da quadrilha na questão de relações amorosas. Em uma de nossas conversas, ele nos disse que é muito comum que se formem casais duradouros durante os ensaios e que ele mesmo, conheceu a esposa por causa da Tongil. Outra habilidade adquirida é a capacidade de adaptação e resolução de problemas, que sempre ocorrem durante as apresentações. Além disso, existem os casos de brincantes que expandem o universo junino ao se mudarem e acabarem fundando suas próprias quadrilhas em diferentes locais.

Gilmá sempre foi o marcador da quadrilha, mas nos últimos anos, depois de uma cirurgia e com o cansaço que se acumulou, ele tem aberto passagem para pessoas mais novas atuarem como marcador, já pensando no futuro da Tongil e de seus brincantes.

Um dos valores mais importantes que o senhor Gilmá tenta passar é o de que sempre deve existir o respeito entre todos.

Com esse princípio, os membros entendem o quão importante é aceitar as pessoas como elas são. Segundo Gilmá, nunca houve problema com relação a aceitação de pessoas seja qual fosse sua etnia, gênero ou orientação sexual. Ele ressalta a importância da quadrilha como uma festa para todos e que essas pessoas que geralmente sofrem preconceitos encontram um espaço para serem elas mesmas, colocando sua dedicação na quadrilha e melhorando a qualidade do trabalho.

Como no caso do Felipe Morgan, brincante há 3 anos da TonGil, possui maravilhosas habilidades com coreografia, é o maquiador e o cabeleireiro oficial da quadrilha e afeiçoa-se a representar a feminilidade nas apresentações, dançando como uma brincante. Felipe conta que sempre foi muito bem acolhido pelo grupo, e que, inclusive, já tentou dançar representando uma figura masculina mas que não se sentia bem ou feliz assim. As saias volumosas e rodadas e seus saltos altos representam muito não só para ele, mas para todas as outras brincantes da quadrilha que se apoiam em sua performance, nos passos, na contagem e sincronia com a música. Ele pontua que ao chegar ao ensaio da TonGil, por indicação de um amigo, acreditava que aquela quadrilha não o aceitaria como uma brincante e que o convite o surpreendeu muito. Também nos deixa a par de seu crescimento: começou dançando na última fileira e em pouco tempo ocupou a fileira da frente, sendo desde então, a referência, de dança, maquiagem, cabelo, força, coragem e acolhimento.

Entrando um pouco no âmbito das grandes apresentações que ficaram na memória do grupo, nos foi revelada uma lembrança de como se deu o primeiro troféu de campeão, recebido em 1994, no Pirambu, local de grande valor cultural.

Além disso, o objetivo deles era conseguir dançar no Dragão do Mar, então sempre que o grupo conseguem se classificar para ir ao Dragão, independente do resultado, dançar ali é sempre um momento de grande realização. Assim como revelam seus inúmeros troféus ( por volta de 193, desde a última contagem) as classificações acontecem com bastante frequência. Resultado do esforço e da dedicação de 35 anos de um grupo apaixonado pelo o que faz, que doa muito de seu tempo ao longo dos anos para vencer barreiras financeiras e sociais com o intuito de preservar a tradição, o rito e o fervor junino por mais duradouras décadas.

Foto 1: Ensaio Quadrilha TonGil 2019. Créditos: Andréa Pinheiro
Fotos 2,3,4: Acervo de imagens do grupo TonGil. Créditos: Gilmá
Fotos 5,6: Troféus da Quadrilha TonGil. Créditos: Seltton Mourão e Laura Bomfim
Fotos 7,8,9: Oficina de Maquiagem do Grupo TonGil, ministrada por Felipe Morgan. Créditos: Laura Bomfim, Seltton Mourão, André Domingos.
Foto 10: Prefeito Roberto Cláudio entrega a revitalização da praça TonGil. Créditos: Prefeitura de Fortaleza. Foto 11: Bairros que receberão as apresentações do Grupo TonGil em Fortaleza. Créditos: Laura Bomfim
Fotos 12,13,14: Nossa equipe junto aos participantes e o fundador da TonGil.

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Redação para Mídias Digitais
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Perfil da turma da disciplina de Redação para Mídias Digitais 2019.1 do curso de Sistemas e Mídias Digitais da UFC.