Reisado do Escuta

Redação para Mídias Digitais
Pici Cultural
Published in
12 min readJun 2, 2019

São os melhores jornalistas aqueles que conseguem, em poucas palavras, traduzir em um texto o que a humanidade tem de mais precioso: o sentimento, a História, a cultura, a arte, a devoção. Semelhantemente, talvez sejam os melhores e verdadeiros artistas aqueles que conseguem fazer poesia do cotidiano, descrevendo apaixonadamente o que veem no mundo, além dos muros do egocentrismo.

Nós não somos jornalistas e — há controvérsias — não somos artistas. Ainda assim, nos deparamos com a missão de escrever sobre pessoas e seus sentimentos, sua história, sua cultura, sua arte e sua devoção. Pessoas comuns: mães de família, jovens, trabalhadores. Esse desafio nos exigiu um certo tipo de arte — a arte de sermos empáticas, de descobrirmos um quadro em uma frase dita na hora de uma entrevista, de vermos uma sinfonia nas lágrimas derramadas por alguém que presta um depoimento — e um certo tipo de mimetismo da conduta jornalística, para lidarmos com as fontes e para transformarmos os relatos que ouvimos em notícia.

O que nos inseriu nessa realidade foi a responsabilidade de falar do Reisado do ESCUTA, um dos mais tradicionais de Fortaleza. Algumas de nós nem sequer sabíamos o que era Reisado. Mas hoje sabemos. Pensamos em Fagner, e o que ele disse ao tratar sobre o mesmo tema: “trago um canto diferente, cá dentro do coração”. Eis a legenda do nosso desafio: descobrir o que há de diferente nesse canto, e o que existe dentro do coração das pessoas que convivemos durante a execução desse trabalho.

Após algumas entrevistas, visitas, orientações, caixas de BIS, xícaras de café e bolo, apresentamos aqui o resultado. Agradecemos de forma especial a todos do ESCUTA pela recepção, pelos depoimentos, pela paciência com nossas limitações de já-dissemos-que-não-somos-jornalistas e, principalmente, por manterem viva a chama da arte popular: muito obrigada!

Como tudo começou

A história do Reisado do Escuta se confunde com a criação do Espaço Cultural Frei Tito de Alencar (Escuta), assim afirma Luan, que também faz parte da geração mais nova do Reisado. O espaço do Escuta foi fundado no ano de 1980 no Planalto Pici por missionários católicos, visando criar um ambiente que levasse educação e cultura para uma comunidade descendente de índios Tapebas, Tremembés, Tabajaras e afrodescendentes.

Como abrigavam pessoas de diversas culturas, muitos moradores também tinham origem de cidades do interior do Ceará, como Ibiapina, Itapagé, Canindé, Quixadá, Acaraú entre outras. Essa população, ao fazer parte do Escuta, recordava-se das tradições do Reisado vindas do interior. Dona Angélica recorda-se dessa tradição quando morava na sua cidade Iguatu, “Nesse tempo tinha os papangus, apagava as luzes, entravam dançando e cantando nas casas. Eles entravam tudo de máscara”. Esse tipo de Reisado representava os espíritos que atormentavam Judas quando ele traiu Jesus.

Esse sentimento de recordação nessa comunidade tão cheia de pessoas das mais diversas origens, convivendo em um ambiente que valorizava tanto a cultura, fez nascer no ano de 1990 o Reisado do Escuta. A forma como esse Reisado mostra essa tradição leva elementos que vão além da religião, como o reisado do pastoril, no qual possui elementos da cultura indígena e afrodescendente. Além disso, no pastoril há uma disputa entre os grupos azul e encarnado. Essa disputa consiste em ver quem consegue arrecadar mais dinheiro, algo que não ocorre da mesma forma no Reisado do Escuta. Lá eles prezam pela união entre os participantes.

Fotos: Acervo do Espaço Cultural Frei Tito de Alencar.

No ano 2000, o pesquisador de teatro Wellington Pará, vem a comunidade e relaciona o teatro ao Reisado, trazendo o bumba-meu-boi para a comunidade, abraçando a cultura do Nordeste para o Reisado do Escuta. O grupo procura também outras formas de se reinventar com o passar dos anos, em 2015 foi lançado um CD com as gravações de músicas cantadas no Reisado. O som tem ritmos que vão da ciranda, coco e maracatu, além do “afronordestino”, assim nomeado por Leonardo Sampaio, coordenador do festejo.

Em 2019, o Reisado do Escuta completa 29 anos. Hoje, o grupo consegue manter forte essa tradição com a presença de figuras mais antigas como a Dona Angélica que, mesmo com mais de 80 anos, não abre mão de participar. “Vocês não vão se livrar de mim” — é assim que Luan comenta sobre a presença dessa importante e querida participante do Reisado.

Com a presença de figuras antigas e outros jovens que abraçam essa tradição, o Reisado do Escuta continua sendo um importante elemento para o Planalto Pici, levando diversão e cultura para todos dessa comunidade.

Reisado do Escuta: uma festa sobre Solidariedade

Ainda com uma série de mudanças e percalços que ocorreram ao longo das décadas pela comunidade do Pici, não houve um ano em que a cantoria, o ritmo e a energia do Reisado do Escuta tenham deixado de colorir as noites durante a primeira semana de Janeiro. Mesmo sem poder termos conversado com muitos brincantes do Escuta, ficou bem evidente que o sentimento de alegria, celebração e de fraternidade é o mesmo para todos do grupo, seja para a gente mais jovem, seja para a gente mais “sabida”.

A troca de cantorias por doações, a visita marcada, a recepção com lanches e o sentimento de união ao compartilhar do cansaço resultante das noites em claro, são alguns eventos que constituem a experiência motivadora de “tirar” Reisado. O clima de união atrai moradores do bairro e de comunidades vizinhas, juntando vizinhos, amigos, irmãos, filhos, netos e avós para colorirem as ruas com seus versos antigos e ritmo contagiante. Luan, ao perguntarmos o que ele sente em relação ao evento, diz que “É sempre nostálgico, é sempre muito bom. É também um momento de encontro, de brincar, de rever essa galera”.

Por meio dos depoimentos, ficou evidente que o Reisado não só se configura como uma manifestação cultural, mas também de perseverança. O compromisso de cinco noites de caminhada — na qual cada noite eles percorrem as ruas de uma comunidade diferente — por vezes não é o suficiente para conseguir visitar todas as residências pretendidas. “Se a gente não passa na casa de um, aí vem com ‘Ave Maria, dona Angélica, a senhora não passou aqui em casa, nem pra pegar uma caixa de fósforo’. Não sou eu, é o tempo, é as horas, porque às vezes fica tarde”, desabafa Dona Angélica, brincante desde o começo do Reisado do Escuta.

Dona Angélica e Dona Marina conversando sobre os próprios retratos. Houve muita cantoria, o encanto pelas senhoras pelo Reisado foi evidente e bonito de observar. (Foto: Sarah Myrlane)

Entre demais significados, um dos que se destacam é a da realização da manifestação cultural para combater um preconceito social latente em praticamente todas as periferias do país: o de que só existe o medo e a violência.

“Em determinados locais, por muito tempo, algumas pessoas não passavam para o outro lado (da comunidade) porque era da outra facção. A gente nunca teve problema com isso, sempre transitamos em toda comunidade, todo o Pici. Sempre foi muito tranquilo. Porque é a noite, querendo ou não existe esse olhar de perigo, né? Mas a gente vai lá e mostra que não existe tanto essa violência, inclusive eles respeitam muito a gente.” — Luan.

O exercício de propor um novo olhar sobre os problemas sociais da comunidade a partir da cultura popular não é novidade pelo bairro. Variações do Bumba meu Boi, por exemplo, também foram apresentadas para promover a discussão e a reflexão de duas grandes situações: a falta de água no período de racionamento e a falta de documentação das casas. Utilizando-se do jogo de Palhaço de Mateus e Catirina, esses dois espetáculos representavam a vinda do sertanejo à cidade em busca de melhores condições de vida, mas que acabava se decepcionando com quase os mesmos problemas.

Fizemos visitas independentes ao ESCUTA, separados da nossa turma de Redação para Mídias Digitais. O objetivo era conhecer um pouco mais sobre a história do Reisado, especificamente. Além de informações “quantitativas” — datas, histórico — íamos com o objetivo de encontrar. Com o perdão do trocadilho inevitável, íamos ao ESCUTA para ouvir.

No primeiro dia, ao adentrarmos, nos esperava (como sempre) uma mesa farta — com café, bolo, biscoito, suco e tudo o que há de bom — preparada com muito carinho por D. Lúcia e, mais adiante, uma outra mesa, com registros fotográficos, recortes de jornais, CDs, livros sobre o Reisado. Ao lado, uma cadeira com os figurinos utilizados. Luan, Jerssiane Alves e D. Lúcia estavam nos esperando.

Fotografia de participantes do Reisado

No momento inicial, trocamos muitas ideias sobre o Reisado como todo. Fomos introduzidas ao rico material que havia sido separado para nós. Depois, alertadas pelo tempo, iniciamos as entrevistas.

“Faz parte de quem eu sou”, respondeu Luan, timidamente, ao ser questionado sobre a sua relação com o Reisado, existente desde a sua infância.

Aos 23 anos, ele, que chegou a cursar Ciências Sociais, quer seguir a carreira de palhaço. Conta, dessa vez rindo, que atualmente é o zelador do ESCUTA.

“…Mas também tenho atuação em outros espaços. Teve um tempo que tive como voluntário no Pequeno Nazareno, junto da Jerssiane. Lá trabalha com meninos em situação de rua. O projeto mesmo era de engajamento político.”

Luan e Jerssiane, vestidos com o figurino do Reisado, preparando-se para um registro fotográfico. (Foto: Leticia Cavalcante)

O engajamento político de Luan, aliás, não passa despercebido. Como não passa despercebida aos olhos dele a realidade vivenciada no bairro do Pici. Diversas vezes, durante as conversas sobre o Reisado, foi lembrando, junto com a mãe, sobre famílias que passaram por ali, sobre pessoas que já participaram do ESCUTA e que agora estavam em outros lugares, que seguiram outros rumos.

“O Reisado é feito por famílias — é união de famílias. Então por muito tempo teve várias famílias que puxaram: tem a família Lima, família Roque, várias famílias que ajudaram a fomentar e tal. E esse processo de união de famílias, etc também, é uma forma de continuar na comunidade, né”

Pergunta: Quando você era criança, adolescente, no teu círculo de convívio, círculo de amigos tinha gente envolvida com os movimentos culturais?

Luan: Teve um momento que minha vida mesmo era mais para aqui, Pici. Mas depois eu acabei indo para outros bairros por questão de colégio, etc, e perdi um pouco de contato. Querendo ou não você vai crescendo e vai sabendo quem é e etc. Então teve quem morreu. Morava ali perto, do lado. Teve quem fugiu para o interior. Tinha um menino que andava aqui e de repente some. Ele morreu com 11 anos. É difícil… assim… você não se apegar e tal.

A nós, a reflexão: do outro lado da Rua Pernambuco, enquanto apresentamos trabalhos, estudamos para provas, comemos algum salgado na cantina, crianças de 11 anos — nossas vizinhas — morrem. Andam ali e de repente somem.

Pergunta: A UFC deveria investir mais na comunidade? O que você acha que deveria ser feito?

Luan: Lembrando que eu abandonei a universidade. Vai ser um momento polêmico aqui (risos).

Pode polemizar.

Luan: Durante todo o processo que eu construí o movimento estudantil, tinha muito o discurso de “Derrubar os muros da universidade” (…) Já não sei se precisa derrubar tanto, sabe? Deixa os muros ali, deixa a galera ali dentro com seus privilégios mesmo. E se você enquanto universitário, enquanto projeto de vida, quer estar na comunidade, faça (…) Mas eu não curto muito, porque vejo desrespeito. De chegar , sugar e nunca devolver nada, de nunca se fazer nada. (…) É um compromisso de vida, não é uma coisa assim que vem uma vez, faz um momento com as crianças, posta nas redes sociais e tá lindo. Não! É apanhar junto, é sofrer junto, é passar as mazelas juntos. É um compromisso, né. Onde pisa os pés, pensa o coração e ama a cabeça (…) talvez no futuro, em uma outra entrevista, eu diga diferente. Mas hoje em dia eu penso que as pessoas deveriam vir mais como indivíduo do que como entidade.

Existe um olhar muito romântico da Universidade para a periferia. (…) [por exemplo]o assédio daqui [para mulheres] é diferente, o cara tem uma arma. É diferente. Esse romantismo e tal, isso existe. Cê não vai sentar numa mesa de bar aqui e ter as mesmas conversas que no Benfica. Conversa aqui é outra. Desde que me distanciei (da Universidade), aí eu fui tentar vivenciar mais as comunidades, a conversa é: mulher, carro e futebol. Não tem outro. Não tamo discutindo outra coisa. A mesa de bar é isso.

Pergunta: Você acha que toda essa luta social e tudo o que o Escuta representa pode unir as pessoas e ajudar na manutenção do trabalho para o futuro?

Luan: Eu tenho aprendido a dar um passo de cada vez, então a construção é cotidiana. Claro que algumas coisas você tem alguma ideia de futuro, porque você tem que ter um norte. Mas a construção é cotidiana. Cada Reisado é uma lógica. Às vezes você encontra pessoas iguais, né, mas você vê que desde 90, mudou muito. As pessoas e tal. Cada Reisado é um Reisado.

Pergunta: O que você pensa do Reisado, o que ele é para a sua vida agora?

Luan: Com vocês falando, eu me lembrei especificamente de um momento da adolescência que, bem, nessa fase tava começando a ter uma ideia de mundo e tal, aí eles tinham começado a se reunir lá em casa em determinado momento, já para sair. Eu também ia né. Mas aí quando eles chegaram e começaram a tocar, não exatamente a tocar, mas estar ali, eu lembro da euforia que eu senti: “poxa, que massa assim”. Aquele sentimento, como uma nostalgia. É como ouvir uma música antiga… é uma nostalgia que senti, lembrando daquele dia. Talvez foi o momento que eu tomei consciência de “pô, esse aqui é quem eu sou”. O primeiro momento, talvez. Porque você tem sempre que fazer um resgate constante, mas… É isso, assim. É sempre nostálgico, é sempre muito bom.

Se hoje eu tenho tentado uma perspectiva artística né, de vida, foi por essa influência deles. Até quando eu vou para um curso de teatro assim, o pessoal fica “Ah, Fernanda Montenegro, não sei o que”, como inspiração. Não! Para mim foi o Gilvan, a Micinete, a Edvânia , Jonas, Auri, Deci, Preta, José, Ricardo, Anderson, Loro, Dalvanio… — foram os artistas que eu vi aqui, né. E artistas que vieram de fora e participaram aqui. É, é isso.

Muitas de nós não conhecíamos nada sobre Mateus, Babau, Bode e Burrinha. Para todas, ainda é difícil assimilar tudo o que foi conhecido e aprendido durante a vivência desse semestre.

Há muita cultura acontecendo do lado de fora dos muros da Universidade. Talvez não conseguíssemos enxergar isso antes, porque estávamos com as lentes que nos faziam pensar apenas “nos problemas de segurança”, “até aonde o intercampus vai” e “por que colocaram essa escada aqui?”.

Costumamos sonhar com grandes concertos, desejamos conhecer lugares distantes, choramos por Museus. “Isso é muito, mas é pouco”. É distante. A cultura raiz está logo ali, do outro lado da Rua Pernambuco, construída por pessoas comuns, como você, como a gente. Ela todos os finais de ano se prepara para tirar o Reisado em janeiro. Podemos ir com ela… Basta querermos.

Este trabalho foi orientado pela professora Andréa Pinheiro, professora de Redação Para Mídias Digitais — UFC, e executado por: Alana Campelo, Bianca Melo, Carmen Li, Leticia Cavalcante e Sarah Myrlane.

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Perfil da turma da disciplina de Redação para Mídias Digitais 2019.1 do curso de Sistemas e Mídias Digitais da UFC.