A lei quase perfeita: resenha crítica do livro A lei da perfeita liberdade, de Michael Horton

Daniel Ponick Botke
Piedade e devoção
7 min readNov 8, 2022

HORTON, Michael. A Lei da Perfeita Liberdade: A Ética Bíblica a partir dos Dez Mandamentos. Tradução Denise Meister. São Paulo. Cultura Cristã. 2000. 252p.

O livro A lei da perfeita liberdade, de Michael Horton, foi publicado originalmente em 1993 em Chicago, e a sua versão brasileira foi lançada pela Editora Cultura Cristã no ano 2000. Composta por 252 páginas, a obra é dividida em 12 capítulos, dos quais o primeiro e o último introduzem e concluem o assunto abordado, a saber, a ética cristã entendida à luz dos Dez Mandamentos. Os demais capítulos seguem a divisão do Decálogo, sendo um capítulo para cada mandamento. O livro conta ainda com um excelente prefácio de ninguém menos que J. I. Parker, bem como um apêndice com um compilado de perguntas e respostas dos catecismos de Westminster e Heidelberg. Horton, nascido em 1964 nos EUA, é um profícuo teólogo e autor contemporâneo. Sua obra mais conhecida no Brasil talvez seja sua teologia sistemática Doutrinas da fé cristã, publicada em 2019 pela Editora Cultura Cristã. Michael é professor de teologia e apologética no Westminster Seminary California desde 1998, editor-chefe da revista Modern Reformation (MR) e presidente e anfitrião do rádio nacional The White Horse Inn.

Com um linguajar acessível e leitura fluída, o autor inicia o livro no primeiro capítulo demonstrando a relevância e a importância do decálogo tanto para a tradição judaica quanto para os cristãos protestantes, defendendo sua atualidade. Segundo o autor, os Dez Mandamentos são um excelente resumo do que ele classificou como a parte ética dos mandamentos divinos, aqueles que permaneceriam válidos, independente do tempo em que se vive. Essa continuidade pós-Cristo do Decálogo estaria referendada por diversas citações e reafirmações desses mandamentos no Novo Testamento. Em seguida, Horton explica e explora cada um dos Dez Mandamentos e seu significado imediato, bem com suas implicações para nossos dias.

No Primeiro Mandamento, ele demonstra como a ordem de não termos outros deuses além do Senhor não significa apenas evitarmos outras divindades religiosas e ídolos pagãos. Podemos idolatrar outras coisas criadas e torná-las absolutas, quebrando, assim, o Primeiro Mandamento. “Todos os ‘ismos’ da taxonomia psicológica contemporânea são nada além do que o povo chamava de ídolos” (HORTON, 2000, p. 35).

No Segundo Mandamento, sobre não fazer imagens semelhantes ao Senhor , a obra demonstra que não se trata apenas de uma ordenança para a proibição da confecção de imagens, mas sim a proibição da adoração de algo como se este contivesse a pessoa de Deus. Nesse sentido, o mandamento não é apenas sobre o que não devemos fazer, mas também, positivamente, como devemos adorar a Deus. Desse modo, o autor critica a tendência atual de colocar o homem como centro das adorações, substituindo o Deus verdadeiro por nós mesmos, quebrando, assim, o Segundo Mandamento.

No Terceiro Mandamento, nossa atenção é chamada para o zelo de Deus pelo seu nome, e como isso é necessário e benéfico para o seu povo, pois, uma vez que o nome de Deus é desconhecido ou mal utilizado, essa má teologia produzirá um falso culto. Na guarda do sábado, somos lembrados que o descanso semanal nos lembra e nos ensina que Deus virá para nos dar o descanso eterno, e descansamos esperando Nele. A honra aos pais é vista não somente como uma ordenança circunscrita ao lar, mas uma demonstração da necessidade de liderança e poder, que devem ser honrados e respeitados para termos uma sociedade justa e ordenada. Não matarás é interpretado à luz das palavras de Cristo no sermão do monte, onde a correta interpretação deste mandamento nos ensina que o assassinato não ocorre apenas quando terminamos a vida de uma pessoa, mas ao desejarmos sua morte, ou a amaldiçoarmos em nosso coração. Na mesma esteira, o mandamento contra o adultério não está circunscrito ao ato sexual, mas ao desejo pecaminoso e impuro para com alguém fora do matrimônio. O furto, em seguida, não é dado apenas quando subtraímos algum objeto ou valor que não nos pertence, mas também quando, por exemplo, não administramos bem os recursos que nos são confiados, até mesmo o tempo, por exemplo. A preocupação de Deus com o falso testemunho nos revela sua preocupação com as palavras que proferimos, pois elas demonstram o estado do nosso coração.

No último e Décimo Mandamento, Horton demonstra como a cobiça, condenada como pecado por muito tempo, tem se tornado boa em nossos dias; a ambição não é apenas necessária, como benéfica para o andamento da sociedade. Mas isso não passa de um ídolo, uma busca por satisfação em algo que não é o Deus vivo.

Temos, porém, contra a A lei da perfeita liberdade, a conhecida controvérsia no meio teológico quanto ao autor e sua teologia dos dois reinos. Ess a teologia se mostra presente, mesmo que pontualmente, nessa obra, ocasionando até mesmo algumas contradições. A expressão mais clara que encontramos desta doutrina está na frase “Os reformadores argumentaram que há duas espadas: uma regendo a esfera temporal (o Estado) e outra regendo a esfera eterna (a Igreja). A primeira espada é feita de metal; a segunda de tinta e papel” (p. 16). Como a frase diz, ess a doutrina defende haver uma divisão no governo de Deus sobre a terra e, consequentemente, em suas leis. Deus governa de uma forma sobre o seu povo, a igreja e de outra forma sobre o mundo “natural” ou temporal.

Talvez a parte do livro que deixa as consequências dessa problemática divisão evidentes seja o capítulo cinco, sobre o Quarto Mandamento (a guarda do sábado). Segundo o autor, esse mandamento diferente dos outros nove, sendo este o único exclusivo para o povo da redenção. De acordo com ele, “é melhor considerar o sábado como uma ordenança ao povo de Deus, não como um princípio universal que deve ser forçado aos incrédulos que não têm, por enquanto, comunhão com Deus — por que como os incrédulos podem compartilhar do seu descanso?” (p. 98). Isso ocorreu, segundo Horton, pois Adão “escolheu o caminho da rebelião, e o descanso do sábado não era mais uma ordenança da criação, mas uma ordenança da redenção” (p. 99). Por esse motivo, ele afirma que “O quarto mandamento pertence ao que chamamos de parte ‘cerimonial’ da lei em vez de ‘moral’” (p. 106). E, como não poderia ser diferente, a sua argumentação segue até chegar à afirmação de que:

Esses sábados [do AT] apontavam para Cristo e, em seu advento, morte, ressurreição, ascensão e retorno futuro, encontramos um cumprimento tão completo que não mais precisamos do sábado como um sinal tanto quanto não precisamos de sacrifícios ou de um templo. De acordo com Hebreus, Cristo é todos estes três: sábado, sacrifício e templo (2000, p. 108) [Destaque nosso].

O autor esvazia com isso o significado do sábado para nossos dias, tornando-o bom apenas pelos bons resultados obtidos na sua observância (pragmatismo). A grande questão é que não há embasamento bíblico para tais afirmações. Muito pelo contrário, na própria declaração do Quarto Mandamento, há uma justificativa apontando para a semana da criação, deixando clara a continuidade e não a separação entre as ordenanças pré e pós-queda:

Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Porque o SENHOR fez em seis dias o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há, e no sétimo dia descansou. Por isso, o SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou (Ex 20.8,11).

Assim, não podemos afirmar, como ele o faz, que o não remido não se relaciona com o mandamento da guarda do sábado, quando este se relaciona, sim, em desobediência contra Deus. Embora estejamos utilizando o capítulo cinco como exemplo, essa argumentação é recorrente durante todo o livro, fazendo sempre uma dura distinção entre “o comum (criação) com o santo (redenção)” (p. 158). Essa dicotomia é problemática, pois não reflete a realidade experimentada no mundo. Isso faz o autor cair em contradições, quando, por exemplo, ele defende a descontinuidade e o desaparecimento total das leis ditas civis (p. 16), mas, no decorrer do livro, assume que podemos aprender algo a partir das leis civis judaicas (p. 171).

No apagar das luzes, em suas últimas páginas, o autor expõe a origem de sua visão dicotômica da realidade quando diz que “em Cristo, somos tirados do pacto das obras, pelo qual somos julgados transgressores da lei e sentenciados ao julgamento — desde o nascimento — e conduzidos ao pacto da graça” (p. 233) [destaque nosso]. A noção de que somos totalmente separados do mundo, e que o pacto de Deus com Adão e Eva não tem mais nenhum valor, faz com que “deixemos” os ímpios vivendo num pacto (o das obras) e nós em outro (o da graça) quando a narrativa bíblica claramente demonstra o contrário. O pacto das obras continua vigente, Deus continua tendo de ser agradado em sua lei e santidade para podermos ter comunhão com Ele. Por isso, podemos dizer que, sim, somos salvos por obras, e pelo pacto das obras, pois somos salvos pelas obras de Cristo, que cumpriu o pacto e agradou a Deus. O cumprimento não anula o pacto, antes, o torna válido e perfeito para os filhos de Deus. Assim, podemos dividir não em duas leis de Deus, mas em duas respostas a única boa e perfeita lei de Deus, uma resposta em obediência e outra em rebeldia. Do contrário, estaríamos dizendo que a lei do Senhor é quase perfeita, pois foi necessária uma segunda lei para o povo remido.

Não obstante, podemos finalmente dizer que essa obra é muito proveitosa, pois pastoreia nosso entendimento e proceder de acordo com a lei do Senhor, sendo, no entanto, necessário tomar cuidado com as divisões artificiais dessa lei.

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Daniel Ponick Botke
Piedade e devoção

Servo de Jesus Cristo, apaixonado pelas Sagradas escrituras, buscando viver a aprender a viver o evangelho em cada centímetro quadrado da vida.