CREIO NA COMUNHÃO DOS SANTOS

Daniel Ponick Botke
Piedade e devoção
7 min readOct 16, 2022
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“Quem não entra no aprisco das ovelhas pela porta, mas sobe por outra parte, este é ladrão e assaltante.” (João 10.1).

No evangelho segundo João capítulo 10, Jesus compara o reino de Deus a um aprisco, das quais Ele é o pastor. As ovelhas reconhecem sua voz e o seguem. Ele fala ainda de outras que não estão naquele aprisco, referindo-se aos gentios, mas que ainda serão chamadas e se unirão a estas ovelhas (judias) e formarão um só rebanho. O propósito principal de Cristo com estas palavras é nos alertar quanto aos falsos mestres, aqueles que não entram pela porta, Cristo. Estes não querem o bem do rebanho, antes, buscam benefícios para si mesmos. Contudo, este rico texto nos traz outras preciosas analogias e preocupações, tais como se há um aprisco há uma cerca, há um limitador, há um determinado grupo de ovelhas que são rebanho deste pastor. Não apenas os mestres que não entram pela porta não são da parte do bom pastor, como também toda ovelha do lado de fora da cerca, não é rebanho do bom pastor. A pergunta natural que surge, é se podemos levar esta analogia até seu limite e identificar uma cerca bem definida de quem é ou não povo de Deus, quem é ou não co-pastor com o bom pastor.

Justo González em seu livro Uma breve história das doutrinas cristã, usa da metáfora da cerca para se referir aos dogmas estabelecidos pelos concílios da história cristã. De acordo com González, estas doutrinas funcionam como uma espécie de cerca próxima a um penhasco, servindo como alerta e proteção para que não atravessemos este limite e nos arrisquemos na beira do penhasco da heresia.

As doutrinas serem como cercas que não procuram determinar exatamente o que deve ser dito ou pensado, mas, sim, servir de alerta contra os perigos ou consequências inesperadas que podem surgir em determinadas posições, a Igreja determinou desde muito cedo que as duas cercas principais seriam, em primeiro lugar, que Jesus de Nazaré era verdadeira e plenamente humano e, em segundo, que ele não pode ser descrito apenas em termos de sua humanidade, já que Deus estava presente nele de uma forma única (GONZÁLEZ, 2015, p. 132).

Por este princípio podemos identificar o que chamamos de a grande tradição cristã. Enquadram-se nesta definição todos aqueles que subscrevem, pregam, e creem nas doutrinas definidas pelos grandes concílios ecumênicos do cristianismo, o que ocorreu até o século V. Encontram-se entre estes os mais importantes como os de Jerusalém, Niceia e Calcedônia. E foram nestes concílios que doutrinas basilares da fé cristã foram devidamente defendidas. Doutrinas como a divindade e humanidade de Cristo, a Santíssima Trindade (contra o arianismo), o cânon bíblico (contra o marcionismo), a salvação pela graça e não por obras (contra o pelagianismo) etc. Neste sentido McGrath observa:

Lancelot Andrewes (1555–1626), importante escritor anglicano do século XVII, afirmou que o cristianismo ortodoxo baseava-se em dois testamentos, três credos, quatro evangelhos e nos cinco primeiros séculos de história crista (MCGRATH, 2005, p. 42).

Nos tempos modernos, contudo, sofremos do esnobismo cronológico como diria C. S. Lewis. Este termo, cunhado por ele e seu amigo Owen Barfield, reflete muito bem o espírito deste tempo. Os modernos iluminados tornaram-se esnobes em relação a tudo que é antigo, considerando-o ultrapassado. O bom é o novo, o atual, o mais recente, o moderno. O indivíduo agora poderoso e experimentando da sua autonomia e liberdade, não precisa mais se submeter a qualquer instituição ou dogma. Ele é poderoso o suficiente para trilhar seu próprio caminho até à verdade. Este pensamento, como não poderia ser diferente, naturalmente culminou no que chamamos de pós-estruturalismo. Nos nossos dias pós-modernos a verdade absoluta foi quase que por completo relativizada, e a verdade individual e subjetiva absolutização. As cercas e os dogmas tornam-se alvo de chacota por serem arcaicos, antigos, algo da Idade Média que deve ser descartado.

A Idade Moderna trouxe consigo problemas e perspectivas muito diferentes daqueles que a Igreja tinha enfrentado. Até então se pensava geralmente que o mais antigo era em regra melhor do que qualquer inovação, mas agora o espírito da modernidade estava se movendo em direção oposta. A verdade não se encontra no passado, mas no futuro — uma idade de ouro que a humanidade alcançará no futuro, através da inovação, da invenção e do progresso. Como resultado da investigação científica aplicada aos avanços tecnológicos, parecia que o mundo da natureza se abria a infinitas possibilidades. Os velhos sistemas de governo — especialmente a monarquia — deveriam ser abandonados como relíquias. A onda do futuro era a democracia, a educação, a liberdade empresarial e a livre investigação (GONZÁLEZ, 2015, p. 238).

Estes ideais modernos e hiper-modernos não se circunscreveram ao meio científico ou chamado secular, antes adentraram nas mais diversas esferas da sociedade, inclusive na igreja. Nancy Pearcey relata o resultado desta influência nas seguintes palavras:

A rejeição arrogante do passado despojou a igreja das riquezas da reflexão teológica, meditação bíblica e experiência espiritual, as quais são de valor secular. Inculcou a atitude de que não havia nada a ser ganho em estudar o pensamento dos grandes sábios do passado: Agostinho e Tertuliano, Bernard de Clairvaux e Tomás de Aquino, Martinho Lutero e João Calvino. Tratava-se de abordagem sentenciada, quase por definição, ao antintelectualismo e superficialidade teológica (PEARCEY, 2020, p. 314).

Assim, não é difícil de perceber a herança norte-americana deste evangelicalismo de segunda onda nas nossas igrejas brasileiras.

Outro ponto importante que González nos chama a atenção é para a centralidade do culto na formação doutrinária, tanto ortodoxa quanto herética. Ele ressalta que na maioria das definições dogmáticas por meio dos concílios, o que se fez foi reconhecer a doutrina que já era previamente aceita e praticada na reunião dos santos. Da mesma forma, as doutrinas heréticas se expressavam primeiramente no culto, como no caso de Ário, por exemplo, para então ser questionada, e então ser refutada via concílio. Esta constatação histórica nos demonstra a força e a importância do culto na formação doutrinária do cristianismo, e vice-versa. Em outras palavras, poderíamos dizer que o culto forma o dogma na mesma medida que o dogma forma o culto. O culto expressa aquilo que se crê, na mesma medida em que aquilo que se crê é formado e firmado nas mentes e corações por meio do culto. Nas palavras de Justo González,

Também é importante assinalar que a principal fonte das doutrinas não é a especulação teológica, mas, sim, o culto da Igreja. Os estudiosos geralmente se referem a esse princípio como lex orandi est lex credendi — a regra do culto torna-se a regra da fé. O racionalismo moderno nos leva a crer que as ideias surgem principalmente da observação, da lógica e do pensamento objetivo, quando na verdade as ideias surgem da vida e são formadas por ela. Do mesmo modo, tendemos a pensar que as doutrinas surgem em geral do debate teológico, quando a verdade é que elas, na maioria, são expressões daquilo que há muito tempo a Igreja vem experimentando e afirmando em seu culto (GONZÁLEZ, 2015, p. 11).

Isso é de extrema relevância, pois se este cuidado for relegado corremos o risco de congregarmos em uma seita, pensando que estamos em uma igreja cristã. Pois, a aparência pode ser cristã, mas esta pode negar verdades essenciais da nossa fé. Este risco é ainda mais real no mundo de ideais pós-modernos como vimos. Em segundo lugar, precisamos nos lembrar que o culto é público porque há alguém assistindo este culto, e uma vez que nós cristãos estamos prestando o culto e não assistindo, quem está assistindo se não o mundo? Nosso culto deve ser uma apresentação viva de Cristo neste mundo. Mas de qual Cristo? De acordo com qual tradição? Não é possível fazer isso em casa, sozinho, muito menos desconectado da tradição, como se estivéssemos no vácuo da história. Nossas igrejas, se são verdadeiramente igrejas de Cristo, não começaram no dia da sua inauguração, mas o seu fundador é Cristo Jesus. A santa igreja que cremos nasceu na cruz do calvário. A comunhão dos Santos é realizada em um só corpo, o corpo de Cristo, e precisamos discernir este corpo da história, precisamos respeitar as cercas. Do contrário, se não há cerca, não há aprisco, se não há aprisco, não há rebanho, se não há rebanho, não há bom pastor.

O princípio segundo o qual o culto conduz à doutrina — lex orandi est lex credendi — não fica tão patente em nenhum outro contexto como no que diz respeito à doutrina da igreja. Desde os princípios do cristianismo, seus seguidores reuniam-se para adorar e se consideravam membros de uma comunidade que era, de algum modo, diferente do restante da sociedade (GONZÁLEZ, 2015, p. 153).

Portanto, é nosso culto que revelará a qual tradição estamos ligados. É no culto que identificamos os pressupostos sobre os quais estamos sentados. Como diz Leithart: “Não há presente a menos que passado e futuro o habitem. Ou, em outras palavras, não há tempo sem coabitação de tempos distintos” (LEITHART, 2018, p. 88). Não há igreja de Cristo que nasceu no vácuo do tempo, sem uma grande nuvem de testemunhas. Há apenas um aprisco, e apenas um bom pastor. A pergunta que resta é, de qual lado da cerca estamos?

Que Deus nos ajude. Amém.

Bibliografia

GONZÁLEZ, Justo L. Uma breve história das doutrinas cristãs. Tradução de José Carlos Siqueira. São Paulo: Hagnos, 2015. 255 p.

LEITHART, Peter J. Vestígios da Trindade: Sinais de Deus na criação e na experiência humana. Tradução de Leandro G.F.C. dutra. Brasília: Monergismo, 2018. 192 p.

MCGRATH, Alister. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução a teologia cristã. Tradução de Marisa K. A. de Siqueira Lopes. São Paulo: Shedd Publicações, 2005. 664 p.

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Daniel Ponick Botke
Piedade e devoção

Servo de Jesus Cristo, apaixonado pelas Sagradas escrituras, buscando viver a aprender a viver o evangelho em cada centímetro quadrado da vida.