CULTO, CREDOS E CONFISSÕES

Daniel Ponick Botke
Piedade e devoção
8 min readAug 22, 2022
Afresco do século XVI na Capela Sistina representando o Primeiro Concílio de Niceia

Não tenho prata nem ouro. Mas o que tenho isso te dou: Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, anda! (Atos 3.6)

Há um desejo inato no interior de cada ser humano, sem exceção. Todos nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus com o propósito de glorificar o seu nome e nos relacionarmos com Ele. A humanidade busca, como que tateando no escuro, encontrar a resposta para as perguntas e anseios mais profundos da sua alma, mas esta sede só é saciada pelo Deus criador de todas as coisas, o mesmo que nos criou com esta sede. Contudo, como poderemos conhecer um Deus que é transcendente, todo-poderoso, santo, e tantos outros atributos magníficos que este Deus possui? Como poderemos conhecer um Deus que habita em luz inacessível (1Tm 6:16)?

Tomando estes impedimentos como verdades, homens como Karl Barth, por exemplo, definiram nosso Deus como o “totalmente outro”, aquele sobre o qual nada podemos conhecer, a não ser lampejos e pequenos traços descritos por homens falhos na tentativa limitada de conhecê-lo. Entretanto, esta não é a verdade revelada a nós pelo nosso Deus. As Sagradas Escrituras nos mostram um Deus se revelando ao homem desde Adão, passando pelos patriarcas, juízes, reis e profetas, até chegar no seu ápice: Cristo Jesus encarnado. O verbo, a sabedoria divina feita carne e habitando entre nós. O Deus do cristianismo é transcendente mas também é imanente, pois Ele se fez imanente por nós. Cristo se fez homem para que por meio dele pudéssemos ter acesso, ver e conhecer o Pai. Nas palavras de Bavinck:

Está além do nosso alcance, mas Cristo, que viu o Pai, o revelou para nós. Podemos confiar nele, e o seu testemunho é verdadeiro e digno de toda aceitação. E se você, ó homem, quer saber quem Deus é, não pergunte ao sábio, aos escribas, aos debatedores dessa era, mas olhe para Cristo e ouça sua palavra. (BAVINCK, 2021, p. 56)

Esta revelação foi, por intenção e propósito divino, registrada pelos seus servos, tendo em vista o cumprimento da obra de Cristo neste mundo. Por meio da sua Palavra — suas promessas, leis, profecias e cânticos — o Senhor preparou e executou o maravilhoso plano de redenção do seu povo separado e escolhido, povo este do qual Israel era uma figura, uma sombra do que viria a se cumprir. O cumprimento e a formação deste povo, fruto da obra de Cristo Jesus, é a sua igreja santa e imaculada. Nascida de Cristo, mas firmada na Palavra e no Espírito. Segundo Bavinck:

No mesmo dia em que a igreja de Cristo recebeu essa tarefa e começou a executá-la, o derramamento do Espírito Santo aconteceu. Por outro lado, ao mesmo tempo que o Espírito Santo passou a habitar a igreja, ela, como comunidade independente de cristãos, como portadora da palavra e do evangelho e como pilar da verdade, passou a existir. Ainda que, de forma preparatória, eles estivessem unidos antes, a Palavra e o Espírito no dia de Pentecostes passaram à união plena e definitiva, e trabalham juntos a serviço de Cristo, que é o Rei da igreja e o Senhor do Espírito. A Palavra o descreve para nós e o Espírito lhe concede a nós como nossa. Em outras palavras, verdade e graça andam juntas porque Cristo é cheio dos dois (João 1:14). (BAVINCK, 2021, p. 499)

Assim, a Igreja é a Igreja de Cristo, daqueles que são separados por Ele desde antes da fundação do mundo, são regenerados e chamados para fazerem parte do seu corpo e tornarem-se um com Cristo. Estas verdades nos são confiadas por meio do operar do Espírito Santo de Deus em nós, por meio das palavras eternas contidas nas Sagradas Escrituras. Pelo operar do Espírito Santo de Deus na realidade, desde a criação, as palavras eternas de Deus ficaram registradas para que, por meio delas, pudéssemos alcançar a vida eterna com Deus. A Bíblia não é, nem se propõe a ser, um relato exaustivo de todos os atos de Deus no mundo. Há milagres e atos de revelação divinos que não foram registrados. Contudo, isso não diminui nem enfraquece esta palavra, pois seu propósito foi, guiado pelo Espírito Santo, registrar tudo aquilo que necessitamos saber para nos achegarmos até Cristo, a saber o seu maravilhoso evangelho:

A palavra da promessa — eu serei um Deus para ti — incluía em si, desde o momento em que foi proferida, o cumprimento — eu sou teu Deus. Deus se entrega ao seu povo a fim de que nós nos entreguemos a ele. Nas Escrituras, encontramos Deus constantemente repetindo sua declaração: “Eu sou o teu Deus”. Da promessa à Eva em Gênesis 3:15 em diante, esse rico testemunho, compreendendo toda bênção e toda salvação, é repetido vez após vez, seja na vida dos patriarcas, na história do povo de Israel ou na igreja do Novo Testamento. E, em resposta, a igreja, ao longo das eras, achega-se com infinitas variedades de suas linguagens de fé, com palavras de gratidão e louvor: “Tu és nosso Deus, e nós somos teu povo, o rebanho do seu pastoreio”. (BAVINCK, 2021, p. 52)

Portanto, a Igreja passa a ser arauto de Deus, baluarte da sua santa Palavra, responsável por anunciá-la, mas também defender e administrar bem as boas novas do evangelho e, assim,

Por essa razão, a Palavra também é a única marca pela qual a igreja de Cristo pode ser conhecida em sua verdade e pureza, e foi por ela que todos os membros verdadeiros da igreja nasceram de novo e foram levados à fé e ao arrependimento, foram purificados e santificados, reunidos e estabelecidos. Por sua vez, eles são chamados a preservar essa Palavra (João 8:31; 14:23), estudá-la (João 5:39), avaliar os espíritos com (João 4:1) e a fugir de todos aqueles que não ensinam essa Palavra. Na verdade, de acordo com Calvino, a Palavra de Deus é a alma da igreja. (BAVINCK, 2021, p. 643)

No entanto, devido à queda do homem no jardim do Éden, sua razão e cognição foram afetados, ele não tem mais as suas faculdades em perfeito estado para conceber e conhecer a Deus corretamente. Por este motivo a Palavra de Deus é mal interpretada e deturpara pelos homens.

Por isso, ainda na formação do cânon do Novo Testamento, no início da Igreja do Senhor, os apóstolos já tinham de lidar com falsas doutrinas e alertar o povo de Deus para ter cuidado com os falsos mestres (1Jo 4.1–6; 2Pe 2). Na sua segunda carta ao seu discípulo, Paulo alerta Timóteo que nos últimos dias o amor de muitos se esfriaria e buscariam mestres que agradassem a eles mesmos, e não mestres zelosos pela sã doutrina. Mas no mesmo texto o apóstolo exorta o discípulo que se mantenha firme na Palavra e a anuncie fielmente (2Tm 4.1–5). Nós, a igreja do Senhor, somos chamados a levantar o estandarte da verdade, a defendermos nossa fé, a habilmente manejarmos a Palavra de Deus, defendendo e purgando a igreja de falsas doutrinas e entendimentos.

No entanto, nos séculos seguintes, a igreja de Cristo foi sendo sucessivamente dividida por toda sorte de heresia e cismas. No tempo presente, uma multidão de denominações e seitas apresenta um espetáculo lamentável de desunião, mas, mesmo assim, algo da antiga união ainda pode ser visto, uma vez que todas as igrejas cristãs ainda estão separadas do mundo por um só e o mesmo batismo, continuam na doutrina dos apóstolos na confissão dos doze artigos de fé, e, ainda que em formas diferentes, elas participam do partir do pão e de orações. A igreja é, em sua unidade, um objeto de fé; ainda que não possamos vê-la ou não tão claramente quanto gostaríamos, ela existe agora e um dia alcançará a perfeição. (BAVINCK, 2021, p. 624)

A Igreja do Senhor tem feito isso desde seu primórdio. Por meio de concílios, credos, confissões, catecismos e dogmáticas, servos fiéis e habilmente capacitados pelo Espírito Santo de Deus têm sistematizado a fé cristã a fim de defendê-la. Uma fé dogmática ou doutrinária não é uma fé intelectualista. Pelo contrário, é uma fé robusta e pujante, que repousa na rocha, que é Cristo, exercendo o seu chamado, como bem complementa John Frame em sua obra A doutrina do conhecimento de Deus:

Na Escritura o conhecimento é ligado estreitamente à justiça e à santidade (cf. Ef 4.24; Cl 3.10). Os três “andam juntos” (1Co 8.1–3; 1Jo 4.7s). O conhecimento que temos de Deus, no sentido mais completo, é inevitavelmente um conhecimento obediente. (FRAME, 2010, p. 49)

Como então cumprimos essa ordenança de zelarmos pela sã doutrina? Encarnando, obedecendo e vivendo estas ordenanças. Não há outra forma de fazermos isso que não seja sendo Igreja de Cristo. Todos nós chamados para sermos filhos de Deus, somos chamados a vivermos em comunhão com nossos irmãos (Hb 10.25–27) , mas não apenas nos relacionando com os crentes do nosso século. Lembremo-nos que estamos rodeados de uma grande nuvem de testemunhas na história do cristianismo (Hb 12.1). Homens e mulheres que professaram, viveram e morreram pela sã doutrina. Fazemos isso, por exemplo, ao observarmos, subscrevermos e confessarmos as confissões de fé deixadas para nós por homens fiéis. Como Kevin Vanhoozer bem coloca na obra O drama da doutrina:

O propósito da teologia dos credos, então, é dirigir a igreja local no caminho das Escrituras e remetê-la às grandes encenações do passado. A teologia dos credos faz a mediação entre o conhecimento local e o universal e, portanto, serve como ponte entre a igreja local e a católica. (VANHOOZER, 2016, p. 512)

Assim, defendemos o correto entendimento das sagradas Escrituras ao encenarmos e vivermos o drama divino da redenção todos os domingos em nossos cultos. Vivendo o Cristo encarnado, anunciando a sã doutrina fiel e dominicalmente, pois

A igreja local é um teatro interativo onde uma visão distinta do mundo — um mundo criado para a comunhão com o Deus trino e uno — é lembrada, estudada, cultivada e celebrada em uma encenação coletiva. O papel do pastor é supervisionar, por meio de uma sábia direção doutrinária, essas produções dramáticas locais. Não consigo imaginar um desafio mais emocionante ou urgente que esse. (VANHOOZER, 2016, p. 471)

Portanto, em Cristo Jesus, por meio do poderoso agir do Espírito Santo, somos feito igreja de Cristo, fundamentados sobre a confissão cristã de que Jesus de Nazaré é o Cristo, o Filho do Deus vivo (Mt 16.13–9). Assim, vivamos à altura do nosso chamado, ajuntando com Cristo e não espalhando, sendo por Ele e não contra Ele (Lc 11.23). Concluindo, nas palavras de Vanhoozer,

A única coisa que a doutrina deve separar é a verdade da falsidade, o caminho da sabedoria, que conduz a Cristo, do caminho da loucura, que leva a outro lugar. (VANHOOZER, 2016, p. 465)

Que Deus nos ajude. Amém.

Bibliografia

BAVINCK, Herman. As maravilhas de Deus. Tradução de David Brum Soares. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. 736 p.

FRAME, John M. A doutrina do conhecimento de Deus. Tradução de Odayr Olivetti. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010. 448 p.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.

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Daniel Ponick Botke
Piedade e devoção

Servo de Jesus Cristo, apaixonado pelas Sagradas escrituras, buscando viver a aprender a viver o evangelho em cada centímetro quadrado da vida.