O CULTO E RITMO DA VIDA CRISTÃ

Daniel Ponick Botke
Piedade e devoção
7 min readNov 4, 2022
Foto de Pixabay

Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima. (Hebreus 10:25)

O texto de Hebreus 10.25 não deixa dúvidas (ou pelo menos não deveria) de que o cristão verdadeiro deve congregar regularmente na assembleia dos santos. No entanto, muito se tem discutido qual seria o formato e a finalidade destes ajuntamentos. Algumas ênfases distintas são dadas de acordo com uma tentativa de resposta a determinados contextos e situações. Algumas vezes, a comunhão é colocada em evidência, outras vezes a missionalidade do culto, ou ainda o ensino. Cada uma destas, por mais genuínas e corretas que estejam, quando colocadas como superiores às demais características do culto, tendem a tomar para si mais valor do que lhes é devido, descaracterizando assim o culto. Assim, visando esclarecer uma das finalidades do culto ao nosso Deus, observaremos a seguir a relação entre o culto e a ética cristã.

A esse respeito, Bill Haslam, em seu livro Faithful Presence: The Promise and the Peril of Faith in the Public Square, usa a expressão presença fiel para descrever o posicionamento esperado do cristão na sua vida fora do ambiente eclesiástico. Com isso, ele quer dizer que, antes de uma ambição revolucionária e de grande impacto social, o que nos é requerido como cristãos é estarmos presentes na sociedade e, em segundo lugar, que essa presença seja fiel. As consequências desta nossa presença, a transformação ou não da realidade, cabe ao Senhor das nossas vidas. (HASLAM, 2021) Na mesma senda do raciocínio, Kevin Vanhoozer nos diz que nossa atuação no mundo como filhos de Deus pode ser comparada com o ato da encenação improvisada. Segundo ele, nos deparamos com as mais diversas situações no nosso dia-a-dia, e em sua maioria não temos um relato bíblico igual ou mesmo semelhante para nos guiar explicitamente sobre o caminho a seguir. Por isso, em face a estas recorrentes situações da nossa vida precisamos improvisar, não de qualquer forma, mas como alguém que conhece o grande roteiro da redenção escrito por Deus. Precisamos, assim, improvisar com uma presença fiel. (VANHOOZER, 2016, p. 144)

A primeira questão óbvia que nos vem à mente é: Essa presença deve ser fiel ao quê? Claro que a resposta é que devemos ser fiéis à lei do Senhor, que continua válida e imutável como o Senhor da lei. A segunda questão é: Como estaremos aptos a exercermos uma presença fiel e uma improvisação conforme o roteiro divino? Aprendendo os dogmas da santa palavra do Senhor, e é aqui que entra nosso olhar para o culto cristão. Para improvisar, é preciso saber o roteiro. Para saber o roteiro, é preciso conhecer e lembrar a sã doutrina, trazer à memória o que nos dá esperança. É preciso estar pronto a explicar o motivo e a razão da nossa esperança. Por isso, precisamos inculcar a sã doutrina em nossas mentes e em nossos filhos. Por isso o Senhor nos instituiu o culto, rotineiro, em que o seu evangelho é pregado repetidamente.

Além disso, para sermos fiéis e criativos em cada uma das situações que a vida nos proporciona, precisamos entender corretamente a realidade em que vivemos. E para entendermos esta realidade, precisamos conhecer o seu Criador. Nós, os filhos de Deus, coabitamos Cristo, Ele em nós e nós nele. Por isso, temos a capacidade e o privilégio de ver os vestígios da Trindade na realidade e viver coerentemente com a origem de toda boa dádiva. Neste sentido Leithart escreve:

A igreja é uma com Cristo porque Cristo e a igreja são cheios do mesmo Espírito, o Espírito do Pai que é o Espírito de Filiação. Para Paulo, a “moradia” de Cristo na igreja não é estática. Cristo faz sua morada na igreja para que a igreja possa “crescer” para ser como a cabeça (Ef4.15–16) (LEITHART, 2018, p. 181).

Podemos, ainda, nos recordar das três perspectivas de entendimento de John Frame e perceber como elas nos auxiliam a entender a importância do ensino da sã doutrina à ética cristã. Em primeiro lugar, e mais evidente, a perspectiva normativa nos lembra que o universo é regido por leis (normas), e essas são estabelecidas pelo Criador e Legislador de todas as coisas, o Senhor nosso Deus. Logo, se quisermos viver de acordo com essas leis, precisamos conhecê-las e, mais do que isso, amá-las. Em segundo lugar, a perspectiva situacional nos auxilia a enxergarmos a verdades divinas presentes em cada situação que nos deparamos. Leithart nos ajuda mais uma vez a resumirmos este ponto:

Podemos entender nossas disposições éticas apenas quando seguem regras e respondem a situações. Esses três são um, porque cada um abriga os outros; cada um habita cada outro. A menos que cada um habite em cada outro, não lemos ética alguma. Ética constitui-se da coabitação mútua de regras, situações da vida real, e disposições virtuosas (LEITHART, 2018, p. 135).

Por fim, a perspectiva existencial de Frame mostra como o culto e o ensino da lei do Senhor precisam se preocupar não somente em entregar um conhecimento intelectual da lei, mas atingir mentes e corações. De uma forma maravilhosamente sábia, o Senhor institui sua igreja e, junto a ela, a seu favor, Ele estabelece o culto, a assembleia dos santos. Para que os santos estejam em comunhão e compartilhem da Palavra, para que os mestres preguem a Palavra a todo tempo, mas também para estabelecerem um ritmo em seus corações diferente do ritmo deste mundo. Paulo nos alerta em Romanos 12:2 que não devemos nos conformar com este mundo; antes, ele nos exorta “transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.” Que instrumento maravilhoso o Senhor nos deu para isso, e este se chama culto. Reunimo-nos no primeiro dia da semana, pois nosso redentor ressurgiu nesse dia, fazendo novas todas as coisas, inaugurando o seu reino nesta terra, e criando para si um novo povo chamado igreja. Já nessa simples característica do culto estamos ensinando e dizendo para nossa alma: Nossa semana não começa no primeiro dia de trabalho, nossa semana não começa com lazer vago, mas com celebração daquele que nos faz viver, em quem “vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17.28) (FRAME, 2010, p. 91).

Deus não nos deixou só informações sobre si, não nos deixou apenas um livro e saiu. Ele nos deixou uma comunidade viva e litúrgica, a Igreja Santa do Senhor. O culto é o ato litúrgico mais eclético da igreja. Os reformadores não se cansavam de reforçar o sacerdócio real de todos os crentes. Com isso eles queriam dizer que todo aquele que é chamado pelo Espírito Santo de Deus pode se achegar a Deus. Não há mais um véu separando o povo de Deus. Por isso no culto todos se sentam lado-a-lado para ouvir não um homem, mas a voz do Deus eterno ecoando em suas palavras pela boca de um arauto fiel.

Eis a importância do culto cristão para a ética cristã. O ser humano caído e totalmente depravado sempre tenderá para os ritmos deste mundo. Sempre viverá atrás das riquezas e prazeres que este mundo tem para oferecer. Por isso, precisamos constante e rotineiramente disciplinar nossos corações para que conheçam e amem a lei do Senhor, e nelas meditem de dia e de noite. Precisamos da comunhão com outros irmãos que nos exortem e nos consolem. Precisamos de uma exultação conjunta e cristocêntrica. Precisamos de mais de Cristo em nós.

Alguns dias antes de escrever este texto tive a oportunidade de observar alguns pescadores puxando suas redes na beira da praia. Inicialmente vi alguns homens puxando a rede, mas logo percebi que aquela cena seria demorada e entediante, e continuei nos meus afazeres. Quase uma hora depois olhei novamente e vi que já haviam mais pessoas ali, até algumas crianças agora compunham o grupo, mas faltava muita rede a ser puxada. Tempo depois (já tinha até esquecido dos tais pescadores) olhei novamente a pescaria, e agora uma grande quantidade de pessoas estava ao redor olhando, o barco estava bem próximo, e logo a rede chegou à praia. Mas para decepção dos pescadores, e dos demais observadores, apenas alguns peixes e outros frutos-do-mar vieram na rede misturados com garrafas pets e outros lixos.

Essa história ilustra um pouco da nossa experiência como igreja e ministros do evangelho no culto do Senhor. A vida cristã requer um trabalho árduo, de longo prazo, e que requer repetição constante. Às vezes, depois de um esforço hercúleo, envolvendo os pastores, pescadores de almas e toda a comunidade, teremos um pequeno punhado de frutos para apresentar misturadas com o lixo das nossas obras próprias. Mas não devemos, nem podemos, nos desanimar, não podemos deixar de congregar como fazem alguns. Devemos jogar nossa rede ao mar do outro lado, de novo e de novo, confiando que o Senhor, que já concedeu mais de uma pesca maravilhosa para seus discípulos, é poderoso e compassivo para nos sustentar, alimentar e nutrir nossa alma.

Que Deus nos ajude. Amém.

Bibliografia

FRAME, John M. A doutrina do conhecimento de Deus. Tradução de Odayr Olivetti. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010. 448 p.

HASLAM, Bill. Faithful Presence: The Promise and the Peril of Faith in the Public Square. Nashville: Thomas Nelson, 2021. 237 p.

LEITHART, Peter J. Vestígios da Trindade: Sinais de Deus na criação e na experiência humana. Tradução de Leandro G.F.C. dutra. Brasília: Monergismo, 2018. 192 p.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.

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Daniel Ponick Botke
Piedade e devoção

Servo de Jesus Cristo, apaixonado pelas Sagradas escrituras, buscando viver a aprender a viver o evangelho em cada centímetro quadrado da vida.