VEM E VÊ

Daniel Ponick Botke
Piedade e devoção
7 min readFeb 3, 2023
Foto de Mikita Yo na Unsplash

Qual a melhor peça apologética cristã já construída pelo homem? Qual é o seu formato? Um artigo, uma peça teatral, uma música ou musical, dança espontânea, argumentos infalíveis em um debate, uma postagem nas redes sociais, um belo discurso? Por mais bem intencionados, belos e bem produzidos que sejam estes artefatos apologéticos, eles são incompletos e impotentes. Imaginemos que fosse possível segurar a peça apologética perfeita em nossas mãos, como um verdadeiro objeto, e analisá-lo. O que encontraríamos ali? Palavras? Cores? Sabores? Pensamentos? Emoções? Segundo o teólogo Vanhoozer, se tivéssemos o objeto apologético por excelência em nossas mãos, veríamos ali nada menos que a Igreja de Cristo Jesus. Diferente de todos os tipos e exemplos listados acima, a Igreja não é feitura humana, e por isso tem a capacidade, em Cristo, de por meio de sua multifacetada existência ser a melhor expressão de Cristo e seu evangelho na terra, conforme veremos neste artigo. (VANHOOZER e STRACHAN, 2016, p. 43)

Isso quer dizer que para Vanhoozer apologética e teologia pública se circunscrevem às quatro paredes da igreja? Não seria um contrassenso? Não, se entendermos, assim como ele, que a igreja, ao prestar seu culto, presta um serviço público ao Senhor, cuja plateia é o mundo. E não somente isso, parte do resultado esperado deste culto e da vida em comunhão da igreja é preparar seus fiéis para uma presença fiel pública no seu dia a dia. É responsabilidade da igreja, mais especificamente do pastor, preparar os seus membros para serem presenças fieis do evangelho de Deus nos meios em que vivem. Nas suas palavras:

“O que igrejas têm a dizer e a fazer que nenhuma outra instituição é capaz?”. Sua resposta de uma perspectiva reformada é: ministrar a Palavra de Deus, pregando, ensinando e aconselhando. A essa resposta gostaríamos de acrescentar: “ moldar o povo de Deus para refletir a nova humanidade que está em Cristo”. (p. 27)

Teólogos públicos ajudam as pessoas a entender o mundo em que vivem e, o que é mais importante, a seguir Cristo tanto em situações cotidianas quanto incomuns. “A liderança ministerial é, antes de tudo e em última instância, discipulado”, embora, para seguir Jesus, a pessoa tenha de saber onde ela está, o que está acontecendo e qual é o caminho da verdade e da vida. O pastor-teólogo é o intelectual orgânico do corpo de Cristo, alguém que tem conhecimento evangélico e é “sábio para a salvação” (2Tm 3.15). (p. 45)

O teólogo canadense refere-se ao ofício do pastor de uma forma interessante, descrevendo-o como “um tipo muito particular de generalista” (p. 21). Com isso ele quer dizer que a matéria de estudo e ocupação de um pastor por excelência é a teologia, todo pastor é um teólogo, sem exceção nem negociação. Contudo, todo pastor deve ser também um generalista, deve buscar conhecer e se informar sobre as mais diversas áreas do conhecimento e da vida cotidiana. O pastor não precisa saber das minúcias da medicina, mas seria bom ele saber do básico da atuação médica, suas responsabilidades, seus medos e desafios, e da mesma forma nas mais variadas áreas do saber e da vida. Isso porque apenas através de um profundo conhecimento teológico, somado a um conhecimento da vida e cultura da sua comunidade de fé, um pastor poderá equipar os seus santos para a vida ordinária em Cristo. Ainda de acordo com Vanhoozer, este é o papel de todo pastor, que também deve ser um teólogo público. “Essa é a antiga-futura tarefa do pastor.” (p. 43)

De forma prática, o pastor teólogo público realiza esta incumbência pelos meios de graça dados a igreja do Senhor. A imagem de Cristo é formada e equipada nos membros da comunidade de fé por meio da pregação fiel da palavra do Senhor. A pregação é o ofício por excelência do pastor, não por menos, visto seu poder e eficácia garantidas pelas Escrituras. Além da pregação, a tarefa do pastor é realizada por meio da visitação e aconselhamento. De acordo com Vanhoozer, o gabinete pastoral é uma extensão do púlpito (p. 198), é ali e na visitação onde o pastor fará o ajuste fino do seu sermão dominical a vida e realidade de cada irmão. Por fim, o pastor como liturgista prepara e forma o povo de Deus para viverem no ritmo da graça. É responsabilidade do pastor, e não do ministério de louvor, definir os atos e ritmos de culto. A liturgia do culto tem muito potencial formativo para que o pastor abra mão desta ferramenta poderosa de instrução do povo de Deus. Mais uma vez nas palavras do teólogo:

Os pastores-teólogos são responsáveis por liderar as congregações na celebração do que é/está em Cristo — chamemo-la orthodoxa (“louvor correto, glorificação correta”). Muitos pastores talvez não pensem em si como liturgistas, mas a celebração a Deus de forma coletiva e organizada de maneira correta é o sentido técnico de liturgia. Literalmente, liturgia significa “o trabalho do povo” (gr., lei-tourgia = leitos [“público”] + ergos [“trabalho”]). Os que organizam os momentos em que a igreja celebra coletivamente a obra divina de salvação estão envolvidos na administração de atividades públicas. Isso também é teologia pública: trabalhar para organizar expressões coletivas de louvor e adoração cristãs. (p. 212)

Durante a história da igreja podemos observar diversos paradigmas do ministério pastoral, como este é entendido, e consequentemente o que é esperado de um pastor. Nos últimos tempos vemos paradigmas como o pastor como o grande administrador, terapeuta, comediante ou coach. Quando estes paradigmas estão em atuação, o que se espera destes pastores é uma boa administração dos “negócios” da igreja ou um cuidado quase que exclusivo do ânimo dos membros. O resultado deste paradigma na igreja são pregações rasas teologicamente, centradas no homem e no seu bem-estar, uma visitação muitas vezes inexistente e uma liturgia preocupada tão somente em agradar à audiência consumista dos membros.

Paradoxalmente, o paradigma que encontramos nos pais da igreja é o pastor como teólogo. Diferente do que percebemos em nossos dias, uma dicotomia entre academia e igreja, entre teologia prática e teologia acadêmica. Nos dias dos pais da igreja, os bispos e pastores eram também os maiores conhecedores das sagradas escrituras. Ao mesmo tempo, em que eram atuantes e conselheiros reconhecidos por toda a sociedade. Quando alguém queria se aconselhar sobre qualquer assunto que fosse, a luz das sagradas escrituras, os pastores eram procurados. O resultado deste paradigma do pastor como um teólogo público é uma pregação cristocêntrica, fiel às sagradas escrituras, atual e viva para a vida da comunidade. A sã doutrina ortodoxa, a verdade de todas as coisas em Cristo Jesus, é exposta dominicalmente. Uma visitação atuante com aconselhamento bíblico e aplicando a realidade do fiel. E uma liturgia bíblica e rica a serviço da formação de Cristo na vida da Igreja. Neste cenário o pastor torna-se o verdadeiro intelectual orgânico da igreja, formado por esta, mas também auxiliador na formação dela.

Uma igreja assim torna-se o símbolo do que Deus intencionava ao formar a igreja em Cristo. Tona-se o “pináculo público na praça pública, a parte visível e pontiaguda de uma estrutura ‘organicamente unida’ [symbibazo] no amor divino que se fez carne em Cristo (C1 2.2,19).” (p. 42). Ao nos perguntarem se pode vir alguma coisa boa de Cristo, se há algum benefício em se fazer parte da igreja, deveríamos responder com convicção assim como Felipe à Nataniel: “vem e vê” (Jo 1.46). Muito mais do que argumentos, muito mais do que discursos e debates, a defesa mais rica e poderosa que o evangelho pode ter é uma igreja viva e operante, dentro e fora do templo. Mais uma vez Vanhoozer complementa bem:

[As pessoas] veem a seriedade e a reverência com que expressamos nossa resposta a Deus (a vitrine disso é o culto de domingo), e isso as influencia para o bem ou para o mal; elas observam a maneira que vivemos com nossas famílias e amigos”. Em resumo: o povo de Deus é o lugar público em que aquilo que está em Cristo é lembrado, celebrado, examinado e revelado. De modo simples, a tarefa do pastor é ajudar congregações “a se tornarem o que são chamadas a ser”. (p. 73, 74)

A igreja, como pináculo público, é a vanguarda da concretização desse plano. Assim, a igreja é a verdade pública de Jesus Cristo, e não apenas a verdade, mas também a bondade pública e a beleza pública do plano divino de redenção. (p. 43)

Por fim, precisamos de teólogos e teólogas em todas as áreas do conhecimento, não só nos estudos Teológicos per si, mas também em todas as áreas da vida. Precisamos de médicos e enfermeiros teólogos, engenheiros teólogos, advogados, faxineiros, pedreiros, empresários, financeiros, mecânicos, encanadores e donos de casa, todos teólogos. Este é trabalho do pastor teólogo atuante na formação dos membros da sua igreja. Os pastores das nossas igrejas são co-pastores do bom pastor, são auxiliares do Mestre na construção do edifício da igreja de Cristo nesta terra. Lapidando a vidas como pedras vidas no edifício da casa espiritual, formando sacerdotes para em reino de sacerdotes (IPe 2.5).

Por que a igreja existe? Existe para expor como as coisas são em Cristo. O povo de Deus, pedras vivas unidas para fazer um templo, o lugar da presença e da atividade de Deus, deve ser uma demonstração coletiva da verdade, do poder e da realidade do evangelho. O grande privilégio e responsabilidade do pastor é ser um artesão na casa de Deus e, dessa forma, edificar e supervisionar esses argumentos encarnados. A melhor apologética é uma vívida teologia pública. (p. 225)

Não podemos “pegar a igreja nas mãos” como objeto apologético, mas podemos abraçar os irmãos, sentar e comer as palavras do pão da vida, cear a eucaristia compartilhada entre o corpo de Cristo. Que possamos perseguir este paradigma bíblico do pastor/mestre, do pastor como teólogo público, e assim gerar e usufruirmos dos frutos.

Que Deus nos ajude. Amém.

Bibliografia

VANHOOZER, Kevin J.; STRACHAN, Owen. O pastor como teólogo público. Tradução de Marcio L. Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2016. 256 p.

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Daniel Ponick Botke
Piedade e devoção

Servo de Jesus Cristo, apaixonado pelas Sagradas escrituras, buscando viver a aprender a viver o evangelho em cada centímetro quadrado da vida.